
É Findi – Cultura e Lazer – Uma Crônica sobre Crônica, por Romero Falcão*
21/12/2024 -
O vento bate no meu rosto. Na medida em que leio, deitado na rede, a crônica "Tartaruga" - numa época distante, 1959, na qual não havia consciência ecológica como hoje - as linhas do famoso cronista, Rubem Braga, me tocam profundamente, de modo que resolvo escrever sobre esse gênero literário - crônica- de certa forma relegado ao quartinho de guardados por alguns críticos da literatura.

Embrulho de peixe
Ela - a crônica - objeto de estudo dos literatos, cuja oscilação do termômetro - texto jornalístico ou literário - a reduziu a gênero pequeno. Luiz Costa Lima afirma: “A crônica é reconhecidamente um gênero menor". Antônio Candido engrossa o coro: “A vida ao rés do chão”. Uns centram fogo na sua arquitetura pouco 'apurada', construída às pressas para o jornal semanal e no dia seguinte virar embrulho de peixe - no tempo do periódico de papel. Quanto ao seu aspecto pouco 'lapidado', contrastando com o conto e o romance, os quais podem ser reescrito dezenas de vezes num processo que pode levar meses ou anos. A crônica - para alguns mestres - se parece com um móvel, um artefato de madeira, feito de carregação, carente de burilamento pelas mãos do exímio carpinteiro. O ímpeto de correr contra o relógio e se aprumar como pode, joga esse gênero literário num lugar menos nobre, segundo especialistas do riscado. Mas para a felicidade dos cronistas, há controvérsia. Afrânio Coutinho faz o reparo, “É enganoso supor que o livro é que dá qualificação definitiva a qualquer escrito. E a crônica que não haja pago excessivo tributo à frivolidade ou não seja uma simples reportagem, estará sempre a salvo, como obra de pensamento ou de arte, embora não saia nunca das folhas de um Jornal”.

O ponto do doce
Um texto escrito com rapidez é sinônimo de coisa miúda, insignificante, caso o autor tenha talento estilístico, sensibilidade arguta, criatividade, fina costura entre o real e a imaginação? Penso que até num bilhete pode haver forte olor literário, e um livro não passar de "rol de roupa" - rol de roupa, como diz um erudito na metáfora certeira. Digo mais, o valor da crônica não estaria na liberdade de não se enquadrar dentro de padrões literários? Ora se firma como escrita que deita em cama de vara, em colchão de capim, ora num luxuoso ortopédico sobre molas? Dependendo da habilidade do autor, este pode mesclar realidade com ficção, botar no mesmo barco, crônica e conto. Claro que de acordo com a natureza e o repertório do cronista, a crônica pode ganhar corpo crítico, social, sarcástico, fidagal, humorístico, lírico ou meloso - nesse caso - se contentando com o mesmo ponto do doce que agrada a todos, sem se arriscar à debandada de seguidores - leitores, evitando temas polêmicos, indigestos.

Genialidade de Clarice Lispector
Um time de ouro elevou a crônica para outro patamar. Encostou, com beleza e irreverência, os olhos do leitor no corriqueiro. Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Fernando Sabino, Antônio Maria, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, dentre tantos. No entanto, a meu ver, foi a genialidade de Clarice Lispector que deu peso existencial, subjetivo, aflitivo, na cabeça do leitor. Sepultando a chancela de gênero menor, fugaz, volátil, do assunto em tela, ao escrever a impressionante crônica, 'Mineirinho', a qual ronda, fustiga, tensiona, atormenta, arranca a indiferença, o couro grosso, expõe o pesadelo atual, permanecendo em carne viva através do tempo.
*Romero Falcão, é um cronista que se arrisca a fazer poema torto, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo