O Colecionador de Memórias, crônica por Zé da Flauta*
09/01/2025 -
Lorde William Montague era o epítome da sofisticação excêntrica. Jovem, milionário e herdeiro de uma dinastia de industriais, vivia em uma mansão vitoriana nos arredores de Londres, cercado por jardins perfeitamente aparados e segredos bem guardados. Mas o que realmente o tornava fascinante e temido em certos círculos era sua obsessão: colecionar memórias.
As memórias
Dizia ele, eram a essência mais pura da humanidade. Sua coleção ficava disposta em uma majestosa estante de cedro com portas de vidro, cada prateleira brilhando sob a luz de candelabros de cristal. Mas estas não eram lembranças comuns. Eram memórias extraídas de personagens históricos, mentes brilhantes, ou indivíduos que testemunharam eventos extraordinários. Cada memória era cuidadosamente armazenada em caixas de chumbo, protegida contra interferências externas. "Uma memória deve ser preservada como o vinho mais raro", dizia Lorde Montague.
William
Não era apenas um colecionador; era um caçador. Ele cruzava oceanos em busca de relíquias psíquicas que ninguém mais possuía. Num leilão em Paris, adquiriu a memória de um soldado que testemunhara a queda da Bastilha. Em Tóquio, comprou a lembrança de um sobrevivente da bomba atômica em Hiroshima. Em Roma, conseguiu a visão de um escultor renascentista ao finalizar uma obra-prima.
Ausência
Mas havia algo que nem sua fortuna, nem sua persistência conseguiam alcançar: “A memória de amor verdadeiro”. A ausência dessa peça o atormentava. Ele tinha vislumbres de Napoleão diante de Josefina, de poetas apaixonados e de reis oferecendo reinos por amores impossíveis. Mas uma memória genuína, intocada e crua de amor verdadeiro, continuava fora de alcance. Para ele, isso simbolizava a experiência humana mais grandiosa e, ironicamente, a única que ele nunca havia vivido.
Certa noite
Durante uma exposição privada para um seleto grupo de amigos e intelectuais, um visitante inesperado apareceu. Ele era um homem simples, com roupas gastas e olhar fixo na estante de memórias. Lorde Montague, curioso, aproximou-se.
— Veio apreciar ou negociar? perguntou com sua habitual altivez.
— Talvez um pouco dos dois, respondeu o homem. Ouvi dizer que o senhor procura algo específico.
Os convidados
Pararam de falar, suas taças de vinho suspensas no ar. William sentiu o coração acelerar.
— Continue.
— Eu tenho algo que talvez o interesse, disse o homem, puxando do bolso uma pequena cápsula de vidro. A memória de um amor verdadeiro. Puro, sem amarras, sem segundas intenções.
Preço
William sentiu o ar rarear. Era o que ele procurava havia anos. Mas havia algo perturbador no tom do homem, algo que parecia ocultar um custo.
— Quanto quer por ela? perguntou o colecionador, sem conseguir esconder a ansiedade.
— Não quero dinheiro, respondeu o visitante. Quero uma troca.
A sala ficou em silêncio absoluto. William estreitou os olhos.
— Uma troca? Pelo quê?
— Pelo que você mais preza: sua própria memória de si mesmo.
O pedido
Era absurdo, mas também fazia sentido. Se William entregasse sua própria memória de quem ele era, nunca saberia que a posse daquele amor verdadeiro significava o ápice de sua coleção. Seria uma troca cega, como jogar uma moeda ao mar. Os convidados observavam com expectativa. Alguns, nervosos, se afastaram, como se pudessem sentir o peso da decisão. Lorde Montague encarou o homem, depois a cápsula. Ele sabia que era o momento decisivo de sua vida. Finalmente, estendeu a mão.
Vazio
Quando William acordou na manhã seguinte, a mansão parecia diferente. A estante ainda brilhava sob a luz dos candelabros, mas ele não reconhecia nenhum dos itens ali. Seu nome, sua história, sua obsessão... tudo havia desaparecido. Restava apenas uma vaga sensação de paz, como se algo maior tivesse preenchido o vazio em sua alma.
Do lado de fora da mansão, o homem misterioso caminhava pela estrada, com um pequeno frasco em mãos. Ele parou e olhou para o horizonte, murmurando:
— Amor verdadeiro não é algo que se coleciona. É algo que se vive.
Então
Quando o homem misterioso desapareceu na névoa, William olhou para a estante, agora repleta de histórias que ele não reconhecia, mas que pareciam, de alguma forma, profundamente suas. Sentiu uma tranquilidade que nunca havia experimentado antes. Não sabia quem era, mas pela primeira vez, isso não importava. A memória mais valiosa não era aquela que ele guardava, mas a que ele estava disposto a perder.
Até a próxima!
*Zé da Flauta é músico, compositor, filósofo e escritor.
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