
Posso Mentir ou Apenas Prometer e Não Cumprir? - Crônica satírica, por Emanuel Silva*
04/02/2025 -
Diz a lenda que um jovem pastor chamado Pedro decidiu testar a paciência do vilarejo ao gritar “Olha o Lobo! Olha o Lobo!” sem que houvesse qualquer fera por perto. Em uma ocasião, quando o lobo veio de verdade, ninguém mais acreditou.
Mal sabia Pedro que estava diante de uma habilidade essencial na sociedade contemporânea. Se tivesse nascido nos dias de hoje, não precisaria pastorear ovelhas. Afinal, mentir pode ser feio e é considerado fake news (nome mais bonito e universal), mas prometer e não cumprir é arte, tradição e, sobretudo, estratégia.
No Brasil, onde a criatividade supera a realidade, os Três Poderes aperfeiçoaram a arte do "prometer sem compromisso". E que fique claro: ninguém aqui está mentindo! São apenas expectativas ajustáveis ao contexto socioeconômico da conjuntura pós-moderna.
O Executivo e a Promessa Metafísica
No Poder Executivo, o chefe da nação aprende desde cedo que o tempo é um aliado da narrativa. Durante a campanha, promete-se o impossível com a convicção de quem já recebeu a verba.
– Vamos construir 500 mil casas populares! – brada o candidato.
Três anos depois, a obra da primeira laje é inaugurada em grande evento, com palanque, banda marcial e a frase:
– Os desafios da economia global impactaram o cronograma, mas seguimos firmes!
O segredo está no uso correto dos tempos verbais: o futuro do presente é o preferido (vamos fazer!), mas o pretérito imperfeito é um trunfo para justificar atrasos (íamos fazer, mas…).
E se alguém cobra? A resposta é sempre um clássico:
– Herdamos um passivo preocupante da gestão anterior.
Pedro, o pastor de ovelhas, ficaria orgulhoso.
O Legislativo e a Arte da Adiabilidade
Já no Legislativo, não se mente. Apenas se propõe um projeto de lei para resolver tudo… que nunca sai do papel.
– Precisamos de um novo código para implantar a verdade do mundo da inteligência artificial e acabar com a mentira (fake news)! – diz um parlamentar.
O projeto entra na pauta, passa por comissões, sofre emendas, debates, audiências públicas, mais audiências públicas, reuniões com especialistas, votação adiada e… pronto! O mandato acabou.
Mas não importa! Em ano eleitoral, o parlamentar reaparece com um folheto:
– Fui o autor do projeto que propôs o debate sobre a futura regulamentação do novo código da verdade (ou censura)!
Sim, é uma frase longa e vazia. Mas funciona.
Pedro teria gritado “Lobo!”, depois criado uma comissão para estudar o comportamento lupino na região, solicitado uma audiência pública com os fazendeiros e, ao ver o lobo chegando, anunciado:
– Precisamos ampliar o diálogo intersetorial antes de agir!
O Judiciário e o Vernáculo da Ambiguidade
O Judiciário não mente nem promete: ele interpreta. E quando um juiz interpreta no país, misericórdia...Tudo pode acontecer.
Imagine um caso simples: uma decisão sobre um gato que roubou um peixe.
– O gato deve devolver o peixe?
Resposta judicial:
Considerando a jurisprudência consolidada, a hermenêutica nos leva a refletir sobre a real titularidade do peixe, uma vez que sua natureza transitória sugere que o bem em questão pode não se enquadrar como propriedade passível de restituição, mas sim como elemento de fluxo orgânico da natureza
Ou seja: depende.
Se Pedro fosse juiz, o lobo jamais teria sido condenado. Primeiro, haveria um debate sobre a subjetividade do ataque. Depois, um parecer técnico sobre a vulnerabilidade do pastoreio. No fim, o lobo poderia ser solto por "erro processual".
E assim seguimos: sem mentir, mas prometendo com convicção e entregando absolutamente nada. Pedro aprendeu tarde, mas nós ainda temos tempo.
E por falar nisso… alguém viu aquele lobo?
*Emanuel Silva, é professor e cronista.
