
É Findi – Cultura e Lazer – Disputa acirrada no ‘País de Caruaru’ - Crônica, por Valéria Barbalho*
08/02/2025 -
Mexendo nos arquivos do meu pai, Nelson Barbalho, encontrei anotações sobre um verdadeiro duelo que houve, em Caruaru, em 1932. Ele tinha 14 anos, era torcedor do Esporte Clube de Caruaru e arriado pela Banda Euterpe. Fazia muitas trelas, escondido do meu avô, e dava a vida por uma confusão entre terceiros, como a que ocorreu.
Naquele ano, os dois banqueiros de bicho mais ricos da cidade eram Senhorzinho, o presidente da Banda Comercial, e João Miguel Santos, o da Euterpe. A rivalidade entre os dois era enorme. Para decidir qual a melhor banda do ano, ficou marcada uma competição musical para a noite de Natal, quando o povo todo se reunia na Rua da Frente. Armaram dois coretos, um em frente ao outro, para as apresentações. Naquela noite, tinha gente que só farinha na rua. Todos se comprimindo para ouvir a afinação dos músicos e a seleção musical. A multidão se dividiu em duas torcidas. Meu pai ficou espremido na da Euterpe.
No começo, tudo correu na santa paz. A Euterpe tocava uma música, a torcida vibrava. A Comercial tocava outra, e a sua torcida ficava eufórica. Começaram tocando alternadamente, cada música melhor que a outra. O tenente Zé Câmara era o regente da Euterpe e o maestro Frutuoso Magalhães, o da Comercial. Ordenaram para os seus músicos que não parassem de tocar nem descessem dos coretos. Isto desclassificaria a banda, que ficaria desmoralizada. Ordem acatada por todos. Ninguém queria perder. Quem seria o vencedor? Estava armada a confusão! Para melhorar o desempenho dos músicos, o presidente da Euterpe mandou trazer umas cervejas. Chico Porto, figura folclórica de Caruaru, orador da banda, ficou em cima do coreto distribuindo as bebidas. Ele servia uma e bebia outra. Animava a torcida, tomava outra. Movidos a álcool, os músicos se esmeraram nos acordes.
De tanta cerveja, Chico Porto, começou a sentir uma vontade danada de fazer xixi, mas aguentou firme. Euterpista roxo, ele não iria descer do coreto e prejudicar a banda. Rindo, aplaudindo, e bebendo, ele continuou lá em cima. E tome música, e cerveja. E a vontade de fazer xixi de Chico, aumentando. As horas passavam e ninguém desistia. Uma hora da madrugada, duas, três, e nada. Meu pai, nessa altura do campeonato, imaginava a surra que iria levar quando voltasse para casa. Cinco horas, o céu já avermelhado, e os músicos incansáveis. Dia claro e a peleja não terminava. Ninguém tinha visto uma disputa tão acirrada.
Às sete horas da manhã, 26 de dezembro, chegou o tenente Barroso, o delegado. Ele tentou negociar com os responsáveis, dizendo que as bandas parassem na mesma hora, e que todos fossem para as suas sedes. Não haveria vencedor. Proposta recusada. Ninguém queria descer primeiro. Então, usando de sua autoridade, o tenente, após mandá-los se apresentar, mais tarde, na delegacia, ordenou que os músicos fossem deixando os coretos, tocando, simultaneamente, um a um, de cada lado. O campeonato ficaria empatado. E assim, desceram todos, menos Chico Porto. Quando ele viu que não havia mais ninguém no lado rival, proclamou: “A euterpe venceu! Descemos por último!”. E a torcida empolgada: “é a campeã!”.
Morto de cansaço, Chiquinho, como meu pai, carinhosamente, o chamava, finalmente desceu. Satisfeitíssimo, embora todo molhado. Não aguentou a bexiga cheia, e fez xixi nas calças, em cima do coreto, durante a grande disputa.
*Valéria Barbalho é médica pediatra, cronista e filha do escritor e historiador caruaruense Nelson Barbalho.