
A infidelidade na obra de Machado de Assis - Leia o comentário de Margarida Cantarelli no concorrido Lançamento do livro de Admaldo Matos
25/03/2025 -
Conforme noticiado em O Poder, a Academia Pernambucana de Letras foi o cenário ontem, segunda-feira 24/03, do lançamento do
Livro 'Vozes do Esconderijo', do acadêmico Admaldo Matos de Assis. O livro é composto por dois ensaios e uma novela. Coube à acadêmica Margarida Cantarelli apresentar o ensaio 'Da infidelidade em romances de Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba e Dom Casmurro'. Os outros dois textos foram apresentados pelos acadêmicos José Nivaldo Junior e Cícero Belmar. O texto de Margarida traz a marca da elegância e da originalidade que caracterizam a autora. O Poder oferece o texto na íntegra para os amantes da boa leitura, sem qualquer omissão, apenas editado para o nosso padrão editorial.
Vamos ao texto
O amigo Admaldo Matos dá-me a satisfação de apresentar um dos ensaios do seu novo livro 'Vozes do Esconderijo', especialmente o ensaio 'Da Infidelidade em romances de Machado de Assis'.
Pensei - logo Admaldo, que é uma das pessoas mais fiéis que conheço! Admaldo é fiel à sua família: à querida Ceça, companheira de vida; à sua mãe – dedicadíssimo; às filhas – para eles e para mim, as meninas, já com suas famílias. Admaldo sempre foi fiel à sua profissão, exercendo com a máxima competência e probidade os cargos que ocupou e foram muitos. Pessoa em quem Marco Maciel – outro homem probo, confiava plenamente as finanças das campanhas políticas. Admaldo é fiel aos amigos, dentre os quais me incluo, numa amizade sincera, verdadeira. Talvez por ser fiel, tenha olhos mais perspicazes para as infidelidades.

Foco
Seu intento de observar a fidelidade/infidelidade na obra completa de Machado, realmente seria tarefa grande (teria que visitar muitos outros entre romances, contos etc.) fez bem focar nos três romances da fase madura do autor, onde o realismo está bem marcante: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, mais famoso se tornou pela dúvida sobre o cometimento de um adultério.
Não vou entrar na análise se a fidelidade é ou não uma virtude. Mas, me atenho, inicialmente, às situações/aos fatos em que a fidelidade é um dever jurídico, portanto, a sua violação (a infidelidade) está tipificada em alguns ordenamentos jurídicos penais, configurando-se um crime: como o adultério. Enquanto noutras formas de infidelidade, e são muitas as hipóteses, pode ser: um pecadilho (por pensamentos); um ato que viole os bons costumes ou a moral; até no campo político onde a traição campeia, chegando à risível Infidelidade Partidária.
Tropeço na vida
Abro um parêntese para contar uma historinha. Era representante da Justiça Federal no TER-PE quando entrou em vigor a Lei da Infidelidade Partidária, competindo aos TREs o julgamento de prefeitos e vereadores que tivessem mudado de Partido no curso do Mandato. A vaga era do Partido e não da pessoa eleita. Julgamos muitos processos, uns tinham justificativas, outros não. Como relatora, julguei um vereador do Município de Solidão que acabou sendo cassado. Tempos depois, encontrei o cidadão num evento. Confesso que não me lembrava dele, mas ele não se esqueceu de mim. Bem-humorado, me disse: “a senhora me cassou, mas o povo me reelegeu”. Respondi: “o povo é sábio, eu apenas apliquei a lei”. E ele continuou: “doutora, aquilo foi um tropeço da vida”.
Infidelidade no Código Penal
Pois é. Muitas infidelidades são “tropeços da vida”. O adultério era, à época dos romances de Machado, uma violação a uma obrigação de fidelidade, um dever decorrente do ato jurídico do casamento. Olhemos a lei no tempo: o Código Criminal do Império (1831) e o da República (1890), ambos sucessivamente vigentes, no período machadiano. Se a infidelidade estava tipificada como crime, era porque a fidelidade conjugal se tratava de um dever. Tomando os dois Códigos, é interessante observar o tratamento desigual – homem/mulher nos tipos penais posto que refletiam os valores morais, religiosos e sociais da época, visando proteger a instituição do casamento e a honra da família, relevantes na sociedade brasileira do século XIX.

Teúda e manteúda
Para a mulher acusada do crime de adultério, o Código Criminal de 1831, diz no art.250: “a mulher casada, que cometer adultério, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a três anos”.
O art.251: o homem casado, que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo precedente.
Art.252: A acusação deste crime não será permitida à pessoa que não seja marido ou mulher e estes mesmos não terão direito de acusar, se em algum momento tiverem consentido no adultério.
Art.253: A acusação por adultério deverá ser intentada conjuntamente contra a mulher, e o homem com quem ela tiver cometido o crime, se for vivo; e um não poderá ser condenado sem o outro.
Delitos e penas
A legislação civil ainda era as Ordenações Filipinas (que determinava para as mulheres: a separação de corpos, a perda de direitos à guarda dos filhos e de pensão alimentícia etc.).
O Código Penal da República, Decreto n.847, de 11 de outubro de 1890, trouxe algumas mudanças. Mas, continuava a criminalização do adultério e o art.279, diz: A mulher casada que cometer adultério será punido com a pena de prisão cellular por um a três anos.
Parágrafo primeiro: Em igual pena incorrerá:
1º) o marido que tiver concubina teúda e manteuda;
2º) A concubina;
3º) O co-reu adúltero
Parágrafo segundo: a acusação é lícita somente aos cônjuges, que ficarão privados desse direito, se por qualquer modo houverem consentido no adultério.
Art. 280 Contra o co-réu adúltero não serão admissíveis outras provas senão o flagrante delito e a resultante de documentos escritos por ele.
Art. 281 – Ação de adultério prescreve no fim de treze meses, contados da data do crime.
Parágrafo único: o perdão de qualquer dos cônjuges, ou sua reconciliação, extingue todos os efeitos da acusação e condenação.
Por curiosidade
O Código Penal de 1940 manteve a criminalização no art.240: cometer adultério. Pena: detenção de 15 dias a 6 meses. Incorre na mesma pena o co-réu. A ação penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido, e dentro de 1 mês após o conhecimento do fato. A abolitio criminis (o fim da criminalização) só veio com a Lei 11.106, de 28 de março de 2005 (está completando 20 anos), que revogou o art.240 do CP, ficando no campo do Direito Civil.

Tragédia Grega
Ao longo do tempo
o tema das infidelidades reais ou presumidas, especialmente o adultério, sempre esteve presente em obras de ficção. Talvez por não ser tão ficção, assim, mas um fruto da vida real onde a traição está presente em muitas situações, não só amorosas, o que causa no leitor vários sentimentos: perplexidade, curiosidade, risos, solidariedade e até mesmo de compaixão. Às vezes pimenta, noutras envenena, mas por trás de cada caso há muitas situações desencadeantes, nem sempre claras, não captadas pelo leitor menos atento.
As tragédias gregas estão cheias de traições, como: em Medeia (431 a.C.), de Eurípedes, o abandono de Medeia por Jazão, que decide se unir à princesa Creusa, o adultério está presente; Agamêmnon (458 a.C.), de Esquilo, a esposa de Agamêmnon comete adultério com Egisto enquanto o marido está na Guerra de Troia. Quando Agamêmnon retorna é assassinado pelos amantes a pretexto de vingar a morte da filha Ifigênia; As Troianas (428 a.C.), de Eurípedes, sobre a Guerra deflagrada pelo rapto de Helena, por Páris. E muitas outras, Hipólito, Electra, as Fenícias.
Nos romances universais
Talvez o exemplo mais famoso centrado no adultério, seja Madame Bovary (1858), de Flaubert. Emma Bovary envolve-se em casos extraconjugais na busca de uma paixão.
Anna Karenina (1877), de L. Tolstói, obra prima, a história de uma mulher da alta sociedade russa, Anna Karenina, que se envolve num caso amoroso com o Conde Vronsky.
O Vermelho e o negro (1830,) de Stendhal. Julien Sorel envolve-se em romances com mulheres de classe social superior, mantem relação adúltera com a esposa do seu patrão.
A Casa das Bonecas, peça teatral de Ibsen, onde o tema infidelidade e casamento com Nora Helmer enfrentado as consequências de suas ações.
Adultérios clássicos
Se tomarmos alguns grandes autores, como William Skakespeare: Otelo (1603) – ciúme e suspeita de adultério. Iago manipula Otelo para acreditar que a esposa, Desdêmona, está tendo um caso com Cassio. A acusação falsa de adultério leva a uma série de eventos trágicos, culminando com o assassinado de Desdêmona por Otelo e no subsequente suicídio dele.
Hamlet (1600), embora o adultério não seja o tema principal, é importante. A mãe de Hamlet, Gertrudes, casa-se com Claudio, irmão do falecido marido e pouco tempo após a morte deste. Hamlet vê isto como uma forma de traição e adultério o que contribui para suas angústias, desejo de suicídio, ora de vingança. Nas suas angústias está uma das frases mais conhecidas: ser ou não ser eis a questão.
Antônio e Cleópatra (1607) explora o relacionamento adúltero entre Marco Antônio, um triúnviro romano e Cleópatra, rainha do Egito.
Mesmo na Megera Domada, o tema é usado para explorar questões complexas de confiança, ciúme, honra e as consequências devastadoras que podem surgir de relacionamentos infiéis.
Molière, também usa na sua obra o tema para criticar a hipocrisia, a vaidade e as falhas morais da sociedade da sua época. Terminam com reprovação das personagens adúlteras, mas, questionando-as através do humor e da sátira. Tartufo (1664), tem por foco a hipocrisia religiosa, o falso devoto tenta seduzir a esposa do seu benfeitor; o Misantropo, o Burguês Fidalgo, As Preciosas Ridículas, no Doente Imaginário (1673), Beline, segunda esposa do hipocondríaco Argan, interesseira e infiel, aparenta cuidar dos seus males, quando de fato pensa é na herança após a sua morte.
Em Portugal
Eça de Queirós, explorou a moralidade da sociedade portuguesa e as relações humanas no século XIX, sendo o adultério um tema recorrente.
O Primo Basílio (1878), Luísa, casada com Jorge, se envolve com o Primo Basílio (péssimo caráter), levando a consequências emocionais e sociais, inclusive na morte de Luísa.
Os Maias (1888), enfoca o relacionamento incestuoso entre Maria Eduarda e Carlos da Maia. Maria Eduarda era casada com Castro Gomes e, no romance, há vários casos de infidelidade. O mesmo na Tragédia da rua das Flores.
O Crime do Padre Amaro é visto como uma forma de traição à fé e aos votos celibatários do Padre. Eça critica a hipocrisia da Igreja e da sociedade.
Casos aparecem em A Relíquia, em O Mandarim e outros.
Não poderia deixar de me referir, não à obra, mas à pessoa do autor - Camilo Castelo Branco, no bicentenário do seu nascimento. Camilo passou um ano preso na Cadeia da Relação do Porto, sendo absolvido em 16 de outubro de 1861. A querela se deu por queixa de Manuel Pinheiro Alves, acusando-o de adultério com Ana Augusta Plácido. Sofreu os horrores do cárcere, nas precárias condições do prédio e de tratamento.
Outras infidelidades
Mas, já divaguei muito, talvez para fugir da seriedade do tema tratado pelo autor. Acho que Admaldo acertou nas escolhas. Muitas outras “infidelidades lato sensu” poderiam ter sido incluídas, como em: Essau e Jacó, Flora é cortejada por dois irmãos gêmeos (Pedro e Paulo), a sua indecisão poderia ser uma “traição emocional” ou não? Em A Mão e a Luva, Guiomar muito cortejada e suas escolhas envolvem questões de interesses, seria uma forma de “traição aos sentimentos verdadeiros”? Ou, ainda, em Helena, com a descoberta da verdadeira identidade poderia ser associada a “traições antigas”?
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
Romance marco na literatura, inaugurando o realismo no Brasil, as quatro mulheres da sua vida: Marcela, Eugênia, Virgília e Eulália têm histórias pessoais bem distintas e, por consequência, a relação entre Brás Cubas e elas são trajetórias completamente diferentes, especialmente em relação à fidelidade.
Marcela, uma espanhola ladina, exploradora, aproveitou-se da paixão que despertava no jovem Brás Cubas para extorqui-lo. Fidelidade seria a palavra mais descabida a esse tipo de relação. Tratou-se, como ele próprio define: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de reis”. Na realidade, Marcela amou os onze contos de reis durante quinze meses e Brás Cubas era um mero provedor. Neste caso não se tratava de infidelidade, mas de crime contra o Patrimônio, já tipificados no Código do Império.
Eugênia, portadora de um defeito físico, era coxa, foi um relacionamento fugaz onde não se pode ver infidelidade pela superficialidade da ligação entre eles. Talvez um sonho para ela e uma esperança de felicidade desfeita. Pobre moça, marcada e de fim tão miserável. Já a sua genitora, dava os seus pulinhos fora da cerca.
Salto para a quarta, Eulália que a família queria fazer o casamento com Brás, para curá-lo de uma paixão, mas o destino não deixou muito à felicidade, levando-a aos dezenove anos.
Volto para a terceira, Virgília – tornou-se um caso de amor, mas nasceu do interesse do pai de Brás de tornar o filho deputado – “foge do que é ínfimo”, aconselhou-o. A filha do Conselheiro indutor da glória de Brás, seria o melhor caminho. Ela era como a chamou: “um diabrete angélico”. Se enquadraria como uma succubus, da Summa Teológica? De fato, aí houve um adultério, materialmente consumado e comprovável, descrito por Machado e que caberia perfeitamente num romance de Eça.
Casa portuguesa
Aquela casinha caiada, com quatro janelas na frente e duas ao lado, o “ninho do amor” poderia ser uma Casa Portuguesa, com certeza: quatro paredes caiadas, um cheirinho a alecrim, um cacho d’uvas douradas, duas rosas no jardim.
Virgilia vivia a dualidade entre o amor e a consideração pública. Para ela prevaleceu o segundo. Por consideração pública, deixou passar o amor, quero crer que da sua parte não fosse tanto. E mais, com um filho de paternidade por lei atribuída ao marido, mas que foi por ela levado a conhecer Brás, pela primeira vez, no seu leito de morte. Piedade ou Remorso? Deixa uma suspeita sobre a paternidade real.
Apesar dos interesses em jogo, houve no adultério uma “traição amorosa”, que poderia ser enquadrado no art. 250 do Código Criminal de 1830.
No romance Quincas Borba (1891)
O Pedro Rubião de Alvarenga, transfere-se de Minas para o Rio de Janeiro e, no trem, inicia uma amizade com um casal do qual se tornou amigo. Do marido, Cristiano, credor e sócio. A mulher, Sofia, que era oferecida pelo marido aos olhares cúpidos masculinos, nasceu um interesse. Embora tenha havido tentativa por parte dele de um relacionamento, nada se concretizou, ficando num romântico olhar para o Cruzeiro do Sul.
Não se aplicaria a pena do Código Penal de 1890, por não se tratar de ato consumado, mas uma mera tentativa, prevista no art.14, parágrafo único, como não punível pelo uso de meios inadequados! Olhar para o Cruzeiro do Sul, é como “viver no mundo da lua”.
Dom Casmurro (1899)
Bentinho, Capitu e Escobar – ainda aquecem debates sobre esse triângulo amoroso ou não. A paternidade do filho de Capitu é o ponto nodal da questão. Conversando com Lourival, comentei com a cabeça de quem exige provas para condenar: “se naquela época já houvesse o exame do DNA, não permaneceria essa dúvida”, ao que ele retrucou, sabiamente como sempre, “também, não haveria o romance”.
O ciúme, pode embotar a percepção da semelhança entre Escobar e o menino; Capitu chorar a morte de um grande amigo é normal, compreensível. Tantos são os argumentos, as hipóteses, as conclusões que cada um pode chegar! Algumas surpreendentes. Um conferencista que veio a esta casa, afirmou: o caso era de Bentinho com Escobar. Como é ficção, nem Machado, se ressuscitasse saberia dizer.
Inaplicável o Código da República
Não havia provas do fato delituoso; já tinha ocorrido a prescrição, além de o có-reu adúltero ter morrido, com a extinção da punibilidade. Levando-se em conta a continuidade da coabitação de Bentinho e Capitu, está configurado o Perdão tácito que não permite qualquer acionamento judicial.
Elogio
Meu caro Admaldo, você tão fiel que é, pinçou fidedignamente as infidelidades, reais ou presumidas, e as expos muito bem. Sei que os seus leitores ficarão curiosos para reler Machado e espero tê-los despertado para outras obras que tornaram ficção as fraquezas ou grandezas humanas, muitas que se apagam nas sombras da “vergonha social”, outras que se perdem ou que se acham nas veredas e nas verdades da frágil existência. São os “tropeços da vida”.

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