
Serra Velho- Uma tradição que sofre nesses novos dias violentos
22/04/2025 -
Por Romero Falcão*
Olho o menino, me foge a esperança.
Sexta-feira Santa, saboreio o ovo da nostalgia aqui em casa, matutando sobre uma antiga tradição nos subúrbios, brincadeira de "Serra Velho". Esta se perdeu no tempo, quase ninguém das novas gerações sabe o que é “Serrar um velho", "malhar o Judas". Até o Google tem dificuldade na busca. A propósito puxei conversa com um menino da vizinhança que me surpreendeu, perguntando com toda naturalidade: “Tio, esse negócio de Serra Velho, quer dizer que pegavam um velho e serravam em pedaços, o sangue escorrendo, ele[ gritando, era assim? Olho o menino, me foge a esperança, por um segundo me veio as cenas estarrecedora dos últimos dias, de um bando de adolescentes trajados de farda escolar tocando o terror nos ônibus, nos passageiros, no combalido Rio de Janeiro, cuja violência atormenta o mais preparado, experiente educador.
Palhaços e demônios interiores
São tempos terríveis, de muito remédio, criança diabética tão cedo, exposta ao jorro de brutalidade do jornalismo policial na TV, na internet, nos disparos de informações falsas, de agressões de toda natureza na cabeça que se abre para o mundo. São tempos estranhos, em que justiça é confundida com vingança. Vejo certas postagens na internet questionando" por que na minha época as crianças tinham apelidos: caolho, Olívia palito, banguela, gorducho, cabeça de arromba navio, e ninguém brigava, todos brincavam ,riam, e quando alguém chiava, trocavam tapas, mas depois se entendiam, tudo voltava ao normal". Não precisa ser psicólogo, sociólogo, um estudioso de comportamento humano para perceber que no atual sociedade ensandecida, doente, não há mais espaço, nem muito menos nervos para esse tipo de brincadeira. Cada época carrega suas particularidades, seus palhaços e demônios interiores.

A dentadura, a filha donzela
A zoeira de Serra Velho, cujo "teatro" se fazia na madrugada, na porta dos velhos com seus pijamas de urina e “solidão noturna dos viúvos”, algumas vezes a anarquia ia parar na delegacia. Bate boca, discussão, palavrão, fazia parte da troça. E caso o velho levasse na brincadeira, a serra perdia o corte, envergava, não serrava nem queijo de manteiga. Quanto mais o ancião esculhambava, mais a rapaziada serrava. Um chorava, dois faziam o coro: “Pra quem fica a dentadura , a abotoadura, a filha donzela? Enquanto o som do serrote na mão do mais forte, enfurecia sob os lençóis o juízo do idoso.
Serrote voltar à ativa?
Eu te pergunto, caro leitor, diante do cenário, da realidade em que vivemos, há possibilidade do serrote voltar à ativa? Numa sociedade com ereção por armas, cujo cérebro se engrandece de resolver na tapa, no tranco, no tiro? O "Serra Velho" morreria na calçada sangrando como disse o menino. Talvez, quem sabe, teria a compaixão da lambida de um cachorro de rua. Desse modo, caro leitor, Serra Velho agora só na nostálgica poesia. Que os deuses tenham piedade das nossas crianças!
*Romero Falcão é cronista e poeta
