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Sucessão do Papa Francisco - Reflexão sobre o Dilema entre Permanência e Adaptação na Igreja Católica

26/04/2025 -

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Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

Introdução - O Zelo e a Esperança: Quando a Palavra é Chamado e Ponte

Escrevo este ensaio como filho da Igreja, devoto de Nossa Senhora de Fátima e de São Jorge — o santo guerreiro que enfrenta o dragão da heresia não com ódio, mas com coragem e fé. A espada de Jorge e o coração de Maria simbolizam, para mim, a união entre a firmeza e a ternura que toda verdadeira fé exige. O falecimento do Papa Francisco marca o encerramento de uma etapa singular na história católica — etapa marcada menos por rupturas declaradas e mais por deslocamentos simbólicos, ambivalências teológicas e reconfigurações pastorais.

Esta não é uma crítica desprovida de razão, tampouco uma homenagem cega. É, como disse Heráclito, um esforço para "ouvir o logos" que atravessa as aparências e ilumina o sentido. O filósofo Josef Pieper ensinava que "quem abandona a verdade em nome da relevância, sacrifica ambas" — e essa advertência talvez ressoe com mais urgência agora, quando a Igreja, no desejo de acompanhar o mundo, corre o risco de perder sua bússola interna.

Este ensaio é uma meditação sobre a tensão que atravessa a alma da Igreja há séculos, mas que nos últimos tempos se tornou visível até aos olhos mais distraídos. Uma tensão entre dois modos de ser católico, entre duas pedagogias espirituais, entre duas visões da missão: conservar ou adaptar? Enraizar-se no eterno ou dialogar com o efêmero? Fazer do templo uma fortaleza de oração ou uma tenda aberta ao mundo?

No fundo, tratamos aqui da luta invisível entre o tempo e a eternidade — e de como a Igreja, que é ponte entre ambos, pode manter-se fiel à sua origem sem deixar de tocar a carne do presente. Como ensinou Romano Guardini, "a Igreja não é do mundo, mas está no mundo, e deve, como Cristo, ser sinal de contradição".

Este é, pois, um texto escrito com zelo e esperança. Zelo por aquilo que recebemos. Esperança no que ainda podemos ser. Que seja lido com a mesma disposição com que foi escrito: com lucidez, com respeito e com amor pela verdade que liberta.



1. Uma Igreja em Conclave Perpétuo

A Igreja Católica, embora una na fé e nos sacramentos, jamais foi monolítica em sua expressão espiritual. Como ensina Edgar Morin, a unidade viva é sempre complexa — e a complexidade da Igreja reside em sua capacidade de integrar tensões sem se despedaçar. Desde os primeiros concílios, pulsa em seu interior uma dialética profunda entre carisma e hierarquia, tradição e renovação, contemplação e ação, logos e pathos. Não se trata de mera oscilação histórica, mas de uma respiração espiritual que ora se contrai, ora se expande.

Essa tensão estruturante encarnou-se, ao longo dos séculos, em famílias religiosas que não apenas oferecem modos diversos de viver o Evangelho, mas representam verdadeiras visões de mundo e antropologias teológicas. Dentre essas, destacam-se como polos simbólicos os beneditinos e os jesuítas: não apenas por sua influência histórica, mas por corporificarem o eixo axial de um debate que, mesmo sem ruído, modela a alma da Igreja.

Os beneditinos, com sua ênfase na estabilidade, na liturgia e na sacralidade do tempo, vivem sob a égide de uma ontologia ordenada, herdeira de Platão e Santo Agostinho, que encontra em São Tomás sua síntese luminosa: o ser como participação no ser divino. A regra do "ora et labora" estrutura a vida como liturgia contínua, e a liturgia como expressão objetiva do mistério. O mundo precisa ser transformado, sim — mas a partir da forma que liberta, não da espontaneidade que dissolve.

Já os jesuítas, surgidos no bojo da modernidade, respondem a um mundo em ebulição com mobilidade, inteligência estratégica e apelo à consciência. Herdam de Santo Inácio a prática do discernimento, e de Paulo, o zelo por ser "tudo para todos" (1Cor 9,22). A pedagogia ignaciana, influenciada pela mística e pela psicologia interior, se aproxima de um existencialismo cristão pragmático, que privilegia a ação concreta sobre a especulação abstrata. É, como diria Viktor Frankl, uma espiritualidade orientada ao sentido, mais do que à estrutura.

Essas duas ordens — e o que representam — funcionam, portanto, como matrizes simbólicas de dois modos de ser Igreja: um que busca conservar o fogo da Tradição, e outro que tenta adaptá-lo ao sopro dos tempos. Como ensinava Hegel, o verdadeiro progresso não está em negar o passado, mas em integrá-lo a uma forma superior de consciência. A Igreja, se quiser continuar sendo “mãe e mestra”, precisa saber conservar sem paralisar, e inovar sem se dissolver.

Esse equilíbrio é raro. Por isso, como diria Martin Buber, “toda verdadeira tradição é um diálogo entre o que foi e o que pode vir a ser”. O que está em jogo, então, não é apenas uma disputa eclesial, mas o próprio futuro da presença do sagrado no mundo — se como raiz ou como espuma.

2. Beneditinos: O Espírito da Permanência

A espiritualidade beneditina, nascida no silêncio das colinas de Monte Cassino, ergueu os alicerces da Cristandade europeia. Ali, onde o tempo foi ritmado pela liturgia das horas, forjou-se uma concepção de mundo em que o sagrado não se opõe ao cotidiano, mas o atravessa. Para os beneditinos, a vida não se divide entre o profano e o divino — tudo, se bem ordenado, pode tornar-se oferenda. A liturgia, nesse sentido, não é ornamento, mas espinha dorsal. Como ensinava Joseph Ratzinger, “a liturgia é teologia em estado puro”.

A Regra de São Bento, com sua cadência entre trabalho e oração, não busca sufocar o indivíduo, mas libertá-lo da tirania do ego. A obediência, aqui, é um caminho de integração — e não de submissão cega. O monge beneditino aprende que o verdadeiro domínio de si nasce do reconhecimento de que não é senhor de nada. Trata-se de uma antropologia humilde e ontológica: o homem como ser participado, como criatura que floresce sob o ritmo da ordem cósmica.

Essa visão do mundo tem profundas raízes na filosofia clássica e na espiritualidade patrística. Como dizia São Gregório Magno, “os monges são os guardiões do tempo”. Guardiões, porque sabem que o tempo não é apenas medida cronológica, mas espaço simbólico de redenção. O monastério não é fuga, mas vigília. Nele, cultiva-se o que Bento XVI chamaria de “ecologia interior”: uma vida que reencontra o centro para melhor irradiar a luz.

No contexto contemporâneo, essa espiritualidade representa um contrapeso necessário à cultura da dispersão. Quando tudo se acelera, os beneditinos nos ensinam a parar. Quando tudo se adapta, eles preservam. Quando tudo se dissolve em subjetividade, eles nos recordam que há uma forma — e que essa forma não nos aprisiona, mas nos constitui. Como dizia Lao-Tsé, “é o vazio da vasilha que a torna útil” — e a forma beneditina é justamente esse recipiente sagrado onde o ser pode repousar e florescer.

Mais do que uma ordem, os beneditinos são um símbolo da permanência: daquilo que resiste sem endurecer, que guarda sem fossilizar, que contempla sem abandonar o mundo. São, por isso, uma das colunas invisíveis da Igreja — e talvez de toda civilização que ainda deseje ouvir o silêncio antes de pronunciar a palavra.

3. Jesuítas: O Espírito da Adaptação

Se os beneditinos representam a fidelidade à forma que santifica, os jesuítas encarnam a missão que se adapta. Fundada por Santo Inácio de Loyola em um tempo de crise — a Reforma Protestante e os abalos da modernidade nascente — a Companhia de Jesus surgiu como resposta à urgência: formar homens capazes de defender a fé no campo das ideias, da cultura, da política e da ação direta.

Santo Inácio, ferido na guerra, converte-se não a partir da especulação, mas da experiência. Sua pedagogia espiritual parte da interioridade: os Exercícios Espirituais não impõem uma doutrina — conduzem a um confronto radical com a própria consciência. Ali não há dogma, mas discernimento. Não há forma imposta, mas escuta orientada. O modelo não é o do monge que se retira, mas do soldado que avança com estratégia. Como diria Pascal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece” — mas é preciso, ainda assim, ordenar essas razões.

A teologia jesuítica, especialmente a partir do século XX, aproxima-se cada vez mais da antropologia contemporânea: subjetiva, dialógica, histórica. Influenciada por correntes existencialistas e pela teologia da encarnação, privilegia o contexto, a escuta e a ação concreta. Como observa Viktor Frankl, “a vida interpela o homem, e não o contrário” — e o jesuíta é aquele que se coloca a serviço dessa interpelação, pronto a reformular caminhos sem abandonar o horizonte.

Mas é exatamente nesse ponto que surgem as tensões. A flexibilidade, quando não guiada pela verdade, torna-se plasticidade moral. O discernimento, sem raízes metafísicas, escorrega para o relativismo. A busca por diálogo pode silenciar o anúncio. Como advertia Romano Guardini, “o risco da adaptação é que se perca o conteúdo no processo de se tornar compreensível”.
A pedagogia ignaciana, com seu método dialógico e formativo, foi essencial na fundação de colégios, universidades e missões. Os jesuítas foram onde outros não ousaram ir — China, Índia, Japão — aprendendo as línguas, os costumes, as filosofias locais. No entanto, esse mesmo impulso missionário levou-os, muitas vezes, a situações de tensão com a Cúria, com o papado, e com outras ordens que viam ali um excesso de concessão. Não à toa, foram suprimidos em 1773 e restaurados apenas em 1814.

Hoje, com o primeiro papa jesuíta da história, a espiritualidade da Companhia chegou ao vértice da Igreja. Francisco é, em muitos sentidos, a encarnação institucional desse espírito: flexível, pastoral, atento aos pobres, sensível aos sinais dos tempos. Mas também impreciso, ambíguo e, para muitos, excessivamente político. Sua liderança mostra tanto o vigor da espiritualidade inaciana quanto seus dilemas: o risco de perder a clareza no esforço de ser acessível.

A espiritualidade jesuíta é necessária — mas só cumpre seu papel se mantiver vínculo com a verdade objetiva que sustenta a fé. Como ensinava Buber, “o Eu-Tu é a forma originária do encontro”, mas esse encontro não pode anular a alteridade. Uma Igreja que só escuta e nunca anuncia termina por dissolver-se na horizontalidade.

Os jesuítas são, assim, o pulmão missionário da Igreja em tempos de transição. Mas um pulmão, para respirar, precisa de um coração que pulsa em verdade e uma cabeça que pensa com clareza. Quando se separam da liturgia, da forma e da doutrina, tornam-se apenas ativismo. Quando se enraízam nelas, tornam-se canal de renovação viva.

4. Um Duelo que Simboliza uma Guerra Maior

A tensão entre beneditinos e jesuítas não é, em essência, um embate entre instituições. Trata-se, antes, de um duelo simbólico que representa uma cisão mais profunda — um embate entre visões de mundo, entre antropologias teológicas e estratégias espirituais. Essa tensão ecoa na liturgia e na pastoral, na linguagem dos documentos e nas decisões dos sínodos, nos púlpitos e nos colégios, nas dioceses e nos seminários. É uma guerra discreta, mas formativa. Invisível à primeira vista, mas onipresente nos rumos da Igreja contemporânea.

A espiritualidade beneditina propõe a forma como via de salvação: o rito, a regra, a obediência silenciosa como caminho de santificação. Parte de uma ontologia ordenada que vê no mundo um reflexo do Logos divino — e, por isso, busca preservar as mediações sagradas. Sua confiança na tradição é confiança numa sabedoria acumulada, testada pelo tempo e pela oração. Como diria Lao-Tsé, "o que é duro e rígido morrerá; o que é flexível e suave perdurará" — mas o monge beneditino entende essa flexibilidade como fidelidade paciente, e não como adaptação apressada.

A espiritualidade jesuíta, por sua vez, assume o tempo como aliado. A história é lugar de revelação progressiva — e, portanto, o Espírito sopra onde quer e por onde pode. Não teme as tensões, porque acredita que o discernimento contínuo conduz à luz. Adota a lógica da encarnação: o Verbo fez-se carne — logo, a linguagem da fé deve descer até o chão da realidade humana. Como alertava Edgar Morin, no entanto, “o excesso de adaptação pode destruir a identidade”. O jesuíta moderno, ao tentar dialogar com tudo, pode acabar calando o essencial.

Essas duas espiritualidades moldam dois tipos de sensibilidade católica:

• Uma, vertical, hierárquica, silenciosa, ritual, voltada para o mistério e a eternidade.

• Outra, horizontal, relacional, discursiva, voltada para o humano e para a história.

Ambas são legítimas. Mas nenhuma delas é autossuficiente. A Igreja precisa do silêncio que forma e da palavra que envia, do claustro que guarda e do campo que evangeliza. Como dizia São João Paulo II, a Igreja respira com dois pulmões — o oriental e o ocidental. Talvez seja hora de reconhecer que ela também respira com dois movimentos internos: o da conservação e o da missão, o do templo e o da rua.

Negar essa tensão é ilusão. Absolutizá-la é cisma. A sabedoria está em reconhecer que a harmonia só é possível quando há um centro que unifica. E esse centro não é político, nem estratégico — é Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em quem a eternidade abraça o tempo sem se dissolver nele.



5. Francisco: A Vitória Tática dos Jesuítas?

Com Jorge Mario Bergoglio, a espiritualidade jesuíta não apenas subiu ao trono de Pedro — ela foi entronizada no centro simbólico da Igreja. Pela primeira vez, a Companhia de Jesus, tradicionalmente discreta em relação ao papado, ofereceu ao mundo um papa formado na escola do discernimento, da práxis e da adaptação histórica. E com ele, o espírito inaciano alcançou uma visibilidade e uma influência jamais vistas.

Francisco conduziu a Igreja como quem guia uma missão. Seu estilo rejeitou o aparato cerimonial, preferindo a linguagem gestual e a proximidade afetiva. Reforçou a dimensão sinodal, privilegiou os temas da escuta, da inclusão e da pastoralidade. Deslocou o eixo da ortodoxia para a prática concreta do Evangelho — especialmente entre os pobres, os migrantes e os marginalizados. Seu papado, nesse sentido, foi um exercício ousado de descentralização simbólica.

Mas como todo deslocamento, este também gerou abalos. Muitos fiéis e teólogos viram na ênfase pastoral uma erosão silenciosa da doutrina. A publicação da Amoris Laetitia suscitou confusões sobre a moral familiar. O documento Fiducia Supplicans, ao permitir a bênção pastoral a uniões irregulares, foi lido por uns como gesto de misericórdia e por outros como ruptura simbólica. A ausência de referências claras à condenação do aborto ou à denúncia direta de regimes totalitários alimentou críticas quanto à seletividade moral do Vaticano.

O traço mais distintivo do pontificado de Francisco foi sua ambiguidade programática. Ele não alterou a doutrina formal, mas transformou a atmosfera simbólica. Como alertava Joseph Ratzinger, “a maior heresia não é aquela que nega abertamente o dogma, mas aquela que o dissolve em ambiguidade”. Francisco não negou as verdades da fé — mas, em muitos momentos, deixou de afirmá-las com a clareza que os tempos exigem.

Do ponto de vista estratégico, pode-se dizer que Francisco concretizou a vitória tática dos jesuítas: deslocou a imagem da Igreja de um templo que vigia para um hospital de campanha; de uma guardiã da doutrina para uma cuidadora das feridas humanas. E há mérito nisso. O mundo precisava reencontrar o rosto compassivo da Igreja. Mas a compaixão não pode custar a verdade. Como ensinava Viktor Frankl, “aqueles que oferecem sentido devem ser também guardiões do real”.

O desafio do pontificado de Francisco foi, portanto, o desafio de todo missionário: encontrar linguagem nova sem perder o conteúdo eterno. Seus méritos — como a denúncia profética das injustiças, a aproximação com os mais vulneráveis e a proposta de uma ecologia integral — são reais e significativos. Mas o legado que deixa será inevitavelmente avaliado não apenas pelos frutos imediatos, mas pelas consequências de longo prazo sobre a integridade da fé e a unidade da Igreja.

Como escreveu Martin Buber, “a verdadeira responsabilidade começa quando se responde pelo futuro de uma relação”. Francisco será lembrado como o papa da escuta. Resta saber se, na ânsia de escutar, não deixou de proclamar. Pois uma Igreja que apenas acolhe, mas não propõe, pode tornar-se espelho do mundo, e não sua luz.



6. Bento XVI: A Tradição como Luz Viva

Se Francisco representa a missão que se inclina, Bento XVI simboliza a tradição que se eleva. Intelectual refinado, teólogo de profundidade incomum, Joseph Ratzinger jamais viu a fé como obstáculo à razão — antes, como sua plenitude. Seu magistério, tanto antes quanto depois do papado, foi marcado por uma convicção central: a verdade não é inimiga da liberdade; ela é sua condição de possibilidade.

Bento XVI via na liturgia o ponto de partida da reforma eclesial. Para ele, a crise da Igreja contemporânea era, em essência, uma crise litúrgica — pois ali onde a adoração perde sua centralidade, a fé se torna sociologia e a moral se converte em pragmatismo. Como ele próprio afirmou: “A crise da Igreja que hoje vivemos é em grande parte devida ao colapso da liturgia”. Sua defesa da forma extraordinária do rito romano não foi nostalgia, mas tentativa de reconduzir a Igreja à sua fonte mística: o mistério pascal celebrado com reverência, sobriedade e beleza.

Sua teologia é herdeira direta da grande tradição patrística e escolástica, mas também dialoga com os desafios modernos. Em sua obra Introdução ao Cristianismo (Einführung in das Christentum), antecipou a necessidade de uma fé adulta, capaz de enfrentar o niilismo com coragem filosófica. Sem ceder ao relativismo, soube dialogar com pensadores como Heidegger, Habermas e Levinas, sempre com a clareza de quem sabe que a verdade cristã não precisa de concessões para ser atual.

Ao renunciar ao papado, Bento XVI encenou uma das maiores lições de humildade e responsabilidade espiritual do nosso tempo. Não por fraqueza, mas por sabedoria. Sua saída não foi abandono — foi testemunho. Recolheu-se ao silêncio do mosteiro Mater Ecclesiae como um monge que intercede, como um bispo que contempla. Como São Bento, entregou-se ao recolhimento para que a Igreja encontrasse de novo seu eixo. Sua renúncia foi, talvez, o gesto mais beneditino do século.

Como recorda Étienne Gilson, “a tradição é a democracia dos mortos” — e Bento XVI entendeu que preservar a tradição não é repetir o passado, mas manter viva a presença do eterno. Em tempos de palavras fáceis, ele foi o homem do logos. Em tempos de sentimentalismo, o homem da sobriedade. Em tempos de confusão, o homem da clareza. Foi, em suma, um farol tranquilo em meio à tempestade.

A história o lembrará como aquele que sustentou a ponte entre a razão e a fé, entre a teologia e a oração, entre a liberdade e a verdade. E como o último guardião de uma forma de catolicismo que ousava dizer, com simplicidade e profundidade: Credo ut intelligam — creio para compreender.

7. A Guerra Silenciosa: Entre o Eterno e o Imediato

A Igreja vive, há séculos, uma tensão fecunda entre o eterno e o tempo, entre a estabilidade da doutrina e a fluidez das circunstâncias. No entanto, o que era outrora um diálogo entre tradição e renovação, nos últimos tempos ganhou contornos de uma disputa mais aguda — quase um antagonismo entre dois modelos de presença eclesial. E embora essa guerra se faça sem gritos, ela molda catedrais e homilias, sínodos e seminários, consciências e vocações.

Trata-se, em sua raiz, de um embate entre dois paradigmas: o da identidade ontológica, que vê a Igreja como extensão sacramental do Logos eterno, e o da relevância histórica, que a concebe como mediadora pastoral das dores do tempo. Ambos são legítimos em si, mas tornam-se mutuamente destrutivos quando um perde a consciência de sua incompletude e tenta excluir o outro.

Essa guerra silenciosa atravessa os ministérios, as liturgias, as catequeses, as decisões papais e a formação do clero. Está presente quando um sacerdote hesita em anunciar verdades difíceis com medo de ferir afetos frágeis. Está viva quando bispos optam por omitir o ensinamento moral da Igreja em nome de uma escuta que nunca se converte em anúncio. Está entranhada em documentos que evitam o dogma, preferindo a ambiguidade como recurso de mediação.

Mas como adverte Aristóteles, “toda virtude é uma tensão entre dois extremos”. A Igreja, para ser santa e eficaz, deve caminhar no filo da espada que separa o zelo do fanatismo e a compaixão do relativismo. O grande desafio está em não perder o centro — e esse centro é o Verbo que se fez carne, mas que não se dissolveu em carne.

Como ensinava Hegel, o verdadeiro progresso é aquele que não destrói a forma anterior, mas a sublima numa síntese mais alta. O que muitos chamam de “guerra ideológica” dentro da Igreja é, na verdade, o reflexo de uma tensão mal resolvida entre fidelidade e inovação, entre a rocha e a onda, entre o altar e a praça. Se essa tensão for acolhida com maturidade, pode gerar santidade. Se for manipulada por ideologias, pode destruir séculos de sabedoria espiritual.

Edgar Morin recorda que “a complexidade não é o caos, mas a coexistência ordenada de contrários”. A Igreja precisa, hoje, de uma pedagogia da complexidade. Uma pedagogia que saiba formar padres que celebrem com solenidade e preguem com compaixão. Bispos que dialoguem com a cultura sem trair o Evangelho. Leigos que sirvam no mundo sem esquecer que pertencem ao Reino.

Essa guerra, embora silenciosa, é real. Mas ela não se vence com slogans, nem com simplificações. Vence-se com fé lúcida, caridade firme e esperança vigilante. Pois o que está em jogo não é apenas o futuro da Igreja — é a forma como o mistério continuará a habitar o mundo.

8. O Futuro do Papado em Tempos de Oscilação

Com a morte de Francisco, a Igreja ingressa em um novo ciclo — não apenas cronológico, mas espiritual e simbólico. O conclave que se avizinha não será apenas a eleição de um novo pontífice: será a definição de um rumo, a escolha de um acento, a sinalização de uma resposta a uma época marcada por contrastes intensos. Em um mundo que oscila entre pulsões revolucionárias e impulsos restauradores, entre tribalismos identitários e cosmopolitismos dissolventes, a Igreja também sente o peso dessa polaridade.

Há cardeais que desejarão a continuidade do espírito pastoral inaugurado por Francisco: uma Igreja sinodal, descentralizada, sensível às margens e disposta a flexibilizar linguagens para alcançar os afastados. Outros — enraizados na tradição doutrinal e na clareza litúrgica — anseiam por uma guinada que recoloque a verdade no centro e reafirme o mistério como pedra angular da fé.

No fundo, a tensão que definirá o conclave não será apenas entre “progressistas” e “conservadores” — categorias insuficientes para abarcar a riqueza da tradição católica. Será uma tensão entre dois modos de conceber a autoridade espiritual: como escuta ou como ensinamento, como hospital ou como fortaleza, como diálogo ou como testemunho. Ambas as posturas têm valor, mas nenhuma pode subsistir sem o sopro do Espírito e sem a fidelidade à Palavra.

Como advertia Viktor Frankl, “o perigo do nosso tempo não é o vazio de sentido, mas o preenchimento com sentidos vazios”. O próximo papa terá o desafio de oferecer um sentido pleno — que não se confunda com ideologia, nem se perca em sentimentalismo. Ele deverá ser pastor e mestre, servo e profeta, guardião da doutrina e médico das almas. Deverá unir os dons de Pedro e Paulo, de Bento e Francisco, de São Jorge e da Virgem Maria.

O futuro do papado dependerá de sua capacidade de reencontrar o centro: não um centro político ou geográfico, mas o centro espiritual da fé. Um centro que esteja em Cristo, Verbo encarnado, presente na Eucaristia e vivo na Tradição. Se o novo papa souber unir liturgia e caridade, verdade e ternura, será um sinal de reconciliação interna e de esperança para o mundo.

Como dizia Martin Buber, “Deus habita nas relações autênticas”. Que a escolha do novo pontífice seja fruto de uma relação autêntica com o Espírito — e não de estratégias humanas. Pois mais do que um gestor, o que se busca é um homem configurado ao mistério. Alguém que não tema a contradição do mundo, porque repousa na paz do eterno.

Conclusão: Entre a Espada de Jorge e o Coração de Maria

Chego ao fim deste ensaio com a alma dividida entre o zelo e a ternura, entre a espada de São Jorge e o coração de Nossa Senhora de Fátima. A espada representa a coragem de lutar pela verdade, mesmo quando ela não é aclamada. O coração representa a capacidade de acolher e amar, mesmo quando o mundo parece indiferente ao sagrado. Ambos, juntos, formam o arquétipo do cristão maduro: firme na doutrina, mas doce no trato; enraizado na Tradição, mas sensível aos clamores do tempo.

A morte de Francisco não encerra apenas um pontificado — ela revela o quanto a Igreja está em movimento, em busca de seu equilíbrio profundo. A tensão entre tradição e adaptação, entre beneditinos e jesuítas, entre a verticalidade do rito e a horizontalidade da escuta, continuará viva. Mas essa tensão não deve ser temida. Como ensina Lao-Tsé, “a tensão é o ponto onde a vida começa a se mover”. E talvez a santidade, neste século, seja justamente a arte de manter-se fiel na tensão — sem rasgar a corda, nem fugir do nó.

Aos que amam a Igreja, cabe a vigilância. Não a vigilância amarga dos que acusam, mas a vigilância orante dos que intercedem. É preciso rezar por um papa que una a clareza de Bento à compaixão de Francisco, que fale a linguagem eterna do Logos com o sotaque do tempo presente, que não tema a luz nem a sombra.

O mundo precisa de uma Igreja que não seja espelho de suas modas, mas farol em suas tempestades. Uma Igreja que saiba dizer "sim, sim; não, não", mas que o faça com lágrimas nos olhos. Uma Igreja que, ao abençoar os caídos, não confunda misericórdia com omissão. Uma Igreja que abrace os pecadores, mas jamais abandone os princípios.

Como ensinava Santo Agostinho, “nas coisas essenciais, unidade; nas duvidosas, liberdade; em todas, caridade”. Que o próximo capítulo da Igreja seja escrito com essa tríplice sabedoria. E que o Espírito Santo — que sopra onde quer, mas nunca sopra contra a verdade — inspire os corações dos cardeais e os passos do novo papa.

Pois, no fim, não se trata de vencer disputas internas. Trata-se de continuar a missão de Cristo: anunciar a Verdade que salva, com a beleza que comove e a caridade que transforma.

Que São Jorge nos dê coragem.

Que Maria nos dê discernimento.

Que Cristo nos dê fidelidade até o fim.

Epílogo: Abraão, os Filhos e o Espírito de Convivência

A tensão que percorre a Igreja — entre permanência e adaptação, entre rito e missão — não é um acidente histórico. É, a meu ver, herança espiritual de uma genealogia mais antiga. Ela remonta a Abraão, o pai da fé, cuja descendência se multiplicou em interpretações, povos e promessas.

No coração da tradição judaica, encontramos esse mesmo espírito dialógico: a Torá é interpretada em múltiplas vozes, o Talmude é construído sobre discordâncias, e a liturgia permite variações entre as tradições sefarditas, asquenazes, iemenitas e tantas outras. E, no entanto, apesar de suas divergências, os judeus seguem fiéis à aliança e à identidade comum que os une como povo.

O que sustenta essa convivência não é o consenso absoluto, mas o respeito pela raiz comum e pela seriedade do texto. Interpretar, para eles, não é trair — é aprofundar. Divergir não é romper — é enriquecer. E talvez aí esteja uma lição urgente para nós, católicos: que possamos aprender com os irmãos mais velhos na fé: a arte de viver a tensão sem rachar a unidade.

A Igreja, como casa dos povos, está sendo chamada a essa maturidade: permitir leituras diversas da realidade, experiências litúrgicas complementares, estilos pastorais variados — mas sempre sob a luz do mesmo sol: Cristo, Palavra encarnada.

Se o judaísmo sobreviveu a exílios, perseguições e diásporas mantendo o vínculo com a Palavra, é porque soube diferenciar o essencial do acidental, o núcleo do invólucro. Se a Igreja quiser atravessar este século sem se fragmentar ou se apagar, deverá reencontrar essa sabedoria ancestral.

Como dizia Martin Buber, “a unidade verdadeira não é a anulação da diferença, mas a comunhão no respeito”. Que o próximo tempo da Igreja seja, à semelhança da tenda de Abraão, um lugar onde diferentes peregrinos se sentem acolhidos, e onde o fogo permanece aceso mesmo quando sopra o vento da mudança.

*Jorge Pinho é advogado, procurador do estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

NR - Os textos assinados expressam a opinião dos seus autores.
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