imagem noticia

Ensaio - Restaurando Memórias, Laços e Afetos, por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

03/05/2025 -

imagem noticia
Dedicatória

A Carlos Cruz de Oliveira, meu primo reencontrado pelo destino e pela linhagem, e a Célio Assunção, mestre do cuidado silencioso e paciente.

A vocês, que uniram competência e alma, mãos precisas e corações íntegros, para tornar realidade o que era sonho, memória e promessa.

O trabalho de ambos não foi apenas técnico — foi ético, poético e sagrado. Representam, com humildade e excelência, o que há de mais nobre na tradição lusitana: o zelo pelo que importa, a dignidade do gesto bem-feito, a honra silenciosa dos que servem com verdade.

À minha querida prima Amélia, que cuida de nossos interesses como se fossem seus, com uma generosidade que não se mede e uma lealdade que não se explica.
Sua presença firme e discreta é um elo precioso na cadeia de afetos que sustenta esta história. Minha eterna gratidão.

Dedico também a todos os familiares e amigos de Portugal, com destaque a Helena, Diamantino e Maria, raízes vivas de um afeto que não conhece fronteiras.

Que este gesto de restauração, memória e reencontro sirva como homenagem à força mansa que nos une através do tempo, do sangue e do amor.

Introdução: Quando o Amor se faz Memória

Existem memórias que se alojam em palavras, outras que se escondem em silêncios. Mas há aquelas que se encarnam nos objetos, atravessam o tempo e nos aguardam como relíquias daquilo que foi vivido. A Mercedes Benz 300D, fabricada em 1983, com seu corpo vermelho e interior bege, não é apenas um automóvel. É uma sentinela do passado e um testemunho da esperança. Cada ruído do motor, cada linha de sua carroceria, evoca os dias em que meus pais nos conduziam por Portugal, especialmente nas viagens a Angeja, onde a ancestralidade não é conceito abstrato, mas presença viva e afetiva. Mais do que um meio de transporte, esse carro foi o elo entre gerações, um fio vermelho que liga memórias e destinos. Sua robustez mecânica, sua longevidade incomum e sua elegância discreta fazem dele não apenas um clássico indestrutível, mas um altar sobre rodas.

Restaurar esse carro foi também restaurar um legado. Foi um ato de gratidão aos que vieram antes: a meu pai, que o adquiriu já adulto e vitorioso, quando retornava a Angeja com dignidade e honra; a meu avô Henrique, que partiu de Portugal ainda jovem para recomeçar no Brasil; a meus bisavôs e aos ancestrais que deixaram rastros de coragem e sacrifício para que hoje possámos chamar de lar o que antes era apenas sonho.

Em termos buberianos, essa restauração não foi um ato com um objeto, mas um encontro entre "eus" e "tus" através da história. Foi dar corpo ao "diálogo" entre o presente e o passado, entre a matéria e o espírito. A Cabala nos ensina que, após a quebra dos recipientes originais (Shevirat haKelim), cabe ao ser humano reunir as centelhas (nitzotzot) e reconstruir o mundo por meio de ações significativas (Tikun Olam). Restaurar esse carro é, para mim, uma forma de Tikun familiar.

Como afirmava Confúcio, "respeitar os antepassados é fundamento da virtude". Esse gesto simboliza minha responsabilidade de manter acesa a chama que ilumina o caminho de minha família. Não apenas para lembrar, mas para viver com sentido. Pois, como diria Viktor Frankl, "aquele que tem um porquê, enfrenta qualquer como". E meu porquê é claro: honrar os que amaram e lutaram antes de mim, tornando cada partida um retorno e cada gesto um elo.

Este ensaio nasce do desejo de pensar com profundidade o que representa esse ato simples e imenso: restaurar um carro que carrega não apenas meu passado, mas o espírito de minha linhagem. É um gesto que resgata memórias, reata laços, constitui afetos e perpetua um legado. E talvez seja esse o verdadeiro significado da eternidade: aquilo que permanece através do amor que recebemos e decidimos multiplicar.



Capítulo 1 — A Herança Invisível: Entre Objetos e Significados

O valor de um objeto não se mede apenas por sua funcionalidade, mas por sua capacidade de nos religar ao essencial. A Mercedes Benz 300D que pertenceu a meus pais representa mais do que um meio de transporte — ela encarna o espírito de uma era, a dignidade de uma conquista, o calor das lembranças compartilhadas. Como nos lembra Aristóteles, em sua "Metafísica", a essência de algo reside em seu telos, sua finalidade mais íntima. O telos desse carro é ser ponte entre mundos, elo entre tempos, testemunha silenciosa do amor familiar e da dignidade construída geração após geração.

Essa Mercedes, adquirida por meu pai décadas depois de sua saída de Angeja, já em pleno florescimento de sua vida no Brasil, não é apenas um bem: é símbolo do retorno digno de um filho à sua terra. O carro tornou-se extensão do próprio gesto de meu pai — voltar não como quem busca, mas como quem oferece. É o veículo literal e simbólico da honra, da permanência e da gratidão silenciosa.

Montaigne escreveu que os objetos que nos cercam “conhecem nossos segredos”, e talvez por isso não conseguimos descartá-los com facilidade. Bachelard, em sua "Poética do Espaço", fala dos "íntimos refúgios da memória" — os lugares e as coisas que nos oferecem abrigo simbólico e existencial. Nossa Mercedes é um desses refúgios: nela se alojam vozes, gestos, afetos e tempos.

A herança invisível não se transmite por escritura pública, mas por reconhecimento interno. É aquilo que pulsa silenciosamente nos bastidores do visível. Quando olho para esse automóvel, vejo não apenas o que foi, mas o que permanece — como um relicário que guarda o perfume da vida vivida. Ele representa, com sua estrutura sólida e beleza clássica, uma estética da permanência em tempos líquidos. Ele afirma, com sobriedade germânica e alma portuguesa, que há coisas que não se perdem. E que lembrar é, também, um ato de justiça.

Mais que um automóvel, essa Mercedes é um espelho daquilo que sou: alguém que vive entre mundos, entre tempos, entre vozes. E nela, tudo o que herdei sem perceber — o rigor, a beleza, o cuidado, o afeto — reencontra forma e movimento. Não é apenas um objeto herdado: é uma mensagem deixada em repouso para ser lida quando estivermos prontos. E talvez seja isso que diferencia uma herança viva de uma herança morta: aquela espera o momento de ser compreendida. Esta apenas muda de mãos.

Capítulo 2 — O Tempo como Estrada e Retorno

O tempo humano não é um rio que corre para frente — é um ciclo, uma espiral, uma dança de voltas e ressonâncias. Quando decidi restaurar o carro após a pandemia, compreendi que não estava apenas reparando um bem material, mas fazendo um movimento ritual de retorno e reconexão. Não se tratava de conserto, mas de consagração. Era uma viagem no tempo, não apenas no espaço — uma liturgia íntima em que cada gesto voltava a dialogar com os que vieram antes de mim.

A restauração do carro foi, portanto, uma forma de reencenação simbólica de uma linhagem. Como no pensamento de Mircea Eliade, o gesto ritual restitui ao tempo profano uma qualidade sagrada: ao repetir um gesto originário, inscreve-se de novo na cosmogonia da própria existência. Restaurar o carro foi voltar a um tempo primordial — o tempo em que meu pai, meu avô e meus bisavós tomavam decisões que moldariam minha existência. Foi um retorno à matriz, ao lugar onde o tempo se adensa.

Na tradição oriental, o tempo é entendido como retorno à origem — tao e dharma são caminhos que se percorrem não para fugir do passado, mas para reintegrá-lo ao presente com lucidez. Lao-Tsé ensina: “Retornar é o movimento do Tao. Ceder é o modo do Tao.” Na Cabala, cada ciclo que se reabre é uma chance de reparação (Tikun). Nada é definitivo enquanto o coração for capaz de retornar com humildade e gratidão.

Viktor Frankl afirmava que o sentido da vida se revela quando o homem assume com responsabilidade a herança do passado e o compromisso com o futuro. Restaurar o carro foi esse duplo movimento: olhar para trás com reverência e para frente com entrega. Porque, como ensinava Santo Agostinho, o tempo verdadeiro não se mede pelo relógio, mas pela intensidade do vivido.

Na estrada do tempo, a restauração foi minha forma de agradecer por ter recebido — e de me preparar para transmitir. Pois só retorna com dignidade aquele que soube reconhecer de onde veio. E o tempo, então, deixa de ser apenas cronologia para tornar-se kairos: tempo oportuno, sagrado, redentor.

Capítulo 3 — O Encontro e o Entre: A Filosofia da Alteridade

A descoberta de meu parentesco com Carlos Cruz de Oliveira — aquele que se tornaria meu primo e restaurador do carro — não foi apenas coincidência: foi um chamado simbólico, um desses encontros que parecem orquestrados por algo maior do que o acaso. Como ensinava Martin Buber, "tudo na vida autêntica é encontro". O mundo se transforma em realidade plena quando se torna relação. O “Eu-Tu” emerge quando suspendemos o uso e permitimos o vínculo.

Carlos, à primeira vista apenas um mecânico talentoso, revelou-se elo de sangue e afeto. Descobrimos numa conversa sobre o seu sobrenome herdado de sua mãe que ela, ainda viva, era prima de minha avó Hilda. A informação, revelada como quem acende uma vela num templo escuro, iluminou muito mais do que uma árvore genealógica — iluminou um campo de sentido. Como se o próprio carro, cansado e empoeirado, cheio de ferrugem, soubesse que estava prestes a ser restaurado por mãos familiares. Como se a matéria também reconhecesse o sangue.

Esse reencontro foi expressão viva do que Buber chamava de "entre" — o espaço relacional onde habita o sagrado. Nesse espaço, as palavras não são instrumentos, mas pontes. Foi nesse "entre", nesse intervalo onde dois seres se escutam com verdade, que a ancestralidade sorriu. Era como se, de algum modo, meus antepassados dissessem: estamos aqui.

A identidade, afinal, não é um dado imutável, mas uma rede em constante revelação. Cada reencontro verdadeiro é uma ampliação de si, uma expansão do reconhecimento mútuo. Emmanuel Lévinas nos lembra que "o outro é aquele que me ensina que não sou o centro do universo". Carlos tornou-se, nesse sentido, uma porta de entrada para outra dimensão de mim mesmo — aquela onde memória, carne e cuidado se entrelaçam.

Esse encontro reforçou em mim a convicção de que restaurar o carro era, também, restaurar laços — não apenas mecânicos, mas humanos. E que, no fim, todo gesto de reencontro é um gesto de retorno ao que nos constitui: a comunhão, a escuta, o reconhecimento do outro como espelho e como herança.



Capítulo 4 — O Valor do Cuidado: A Ética da Restauração

Restaurar é cuidar com reverência. Carlos e Célio Assunção não apenas consertaram um carro — eles executaram um rito de atenção amorosa, quase sacerdotal, que devolveu forma ao que carregava alma. Foi um cuidado que ultrapassou o técnico e tocou o simbólico. O cuidado, como ensina Emmanuel Lévinas, é o reconhecimento ético da alteridade, a vigília permanente diante da vulnerabilidade do outro. E aqui, o outro era o tempo encarnado num objeto amado.

Cada peça polida, cada parafuso ajustado, cada camada de tinta aplicada era mais que um gesto funcional: era uma oração silenciosa. Era como se disséssemos aos que vieram antes — "nós lembramos, nós cuidamos, nós estamos aqui". O carro tornou-se paciente e altar ao mesmo tempo. Como no pensamento de Simone Weil, a atenção verdadeira é a forma mais pura de generosidade: e eles a ofereceram sem reservas.

Na Cabala Judaica, o conceito de Tikun Olam — a reparação do mundo — nos convida a restaurar não apenas aquilo que está quebrado, mas a revelar o esplendor original oculto pela fragmentação. Há uma luz em cada coisa, ensina a tradição mística, mas ela precisa ser libertada pelo gesto consciente. Consertar um bem com alma é participar da recriação do cosmos. É um ato que envolve justiça, memória e responsabilidade.

Como nos lembra Buber, "o mundo não é coisa a ser entendida, mas ser a ser encontrado". O mundo se revela na relação. E nesse gesto de restauração, cada detalhe foi relação. A ética do cuidado, nesse contexto, não se limita à preservação do objeto, mas expande-se como cuidado com a história, com os vínculos, com a transcendência que se manifesta nas coisas feitas com amor.

Carlos e Célio não restauraram apenas um veículo — ajudaram a recompor um elo simbólico entre tempos, uma ponte de afeto entre gerações. E talvez seja isso que define o verdadeiro cuidado: aquele que não apenas prolonga a vida útil de algo, mas que restitui sua dignidade e sentido.

Capítulo 5 — O Carro como Relicário: Matéria e Transcendência

Paul Ricoeur cunhou o conceito de "memória incorporada" — aquela que reside nos corpos, nos gestos, nos espaços e nas coisas. É a memória que não se conta, mas que se habita. A Mercedes Benz 300D restaurada tornou-se, nesse sentido, um relicário — não de relíquias litúrgicas, mas de fragmentos sagrados da vida comum, daqueles que nos moldam sem alarde. Como ensinava Confúcio, “o respeito pelo passado é o princípio da retidão no presente”. E esse respeito exige não só lembrança, mas cuidado ativo.

O automóvel, agora íntegro e restaurado, transcende sua função utilitária. Ele se converte em veículo de uma transcendência discreta — discreta, mas poderosa. Cada partida do motor é mais do que um movimento mecânico: é um rito de passagem entre gerações. É o eco de uma voz que não se apagou. Cada curva feita nas estradas nas vielas de Angeja e nas rodovias de Portugal ressoa como uma convocação silenciosa aos que viveram, amaram e lutaram antes de mim.

O volante que meu pai segurava é agora segurado por mim. E com isso, repito gestos que não são apenas meus — são herança incorporada, são liturgia familiar. A estrada, metáfora clássica do destino humano, adquire aqui contorno concreto. A Mercedes, restaurada, é símbolo e sacramento. Ela carrega, como ensina Bachelard, uma "intimidade dilatada": um espaço onde o tempo se deposita como pó de estrelas.

Essa experiência revela que a transcendência não está fora do mundo, mas encarnada nele. O sagrado, como diria Abraham Joshua Heschel, não é o extraordinário, mas a consciência do extraordinário no ordinário. O carro é matéria — mas tocada pelo tempo, pelo afeto, pela intenção amorosa, ele se faz símbolo. E símbolo, no sentido mais profundo, é aquilo que une aquilo que o mundo separa.

Esse relicário sobre rodas, portanto, é mais do que um bem restaurado. É uma oferenda silenciosa à memória dos que vieram antes. Um altar em movimento. Um espelho onde o tempo se curva e o amor permanece.

Capítulo 6 — Entre Ferrugem e Permanência: O Sentido da Tradição

A tradição não é um fardo, é uma seiva. Como dizia Gustav Mahler, “tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo”. Preservar o fogo é manter vivo aquilo que aquece a alma de uma linhagem — e não o que a prende. A Mercedes, mesmo restaurada, carrega em si as marcas do tempo — não como defeito, mas como inscrição de sua biografia. E isso é belo. Porque só aquilo que se permite envelhecer com dignidade pode ensinar o valor da permanência.

A tradição viva é aquela que respeita a origem, mas não se enclausura nela. Ela floresce porque foi regada com sentido. Aristóteles, ao falar da virtude como hábito com propósito, nos ajuda a compreender que conservar não é repetir mecanicamente — é transmitir com discernimento. O carro restaurado não voltou completamente ao estado de zero-quilômetro: ele preserva cicatrizes, memórias, vestígios de amor. Assim é a tradição: uma estrutura com alma.

Ao confiar, depois de restaurado, a guarda do carro ao meu primo Carlos, transmiti a ele algo que transcende a posse: deixei um legado partilhado, um pacto intergeracional. A tradição não é um objeto a ser guardado em vitrine sem uso — é um valor que precisa circular, ser vivido, reinterpretado. Como afirmava Roger Scruton, “a tradição é a democracia dos mortos” — é o direito dos que vieram antes de continuarem presentes nas decisões dos que vivem.

A permanência não é estagnação — é continuidade com sentido. É o fluxo fiel a um eixo. Na Cabala, fala-se de netzach, a eternidade dinâmica, que não é imutabilidade, mas fidelidade que se renova. O carro, ao permanecer em Angeja, restaurado e em uso, não é um totem parado: é um sinal vivo de continuidade. Um ponto de contato entre o que foi e o que será.

Confiar esse bem ao meu primo foi minha forma de confiar também no futuro. A tradição, quando viva, é gesto que abraça o passado com gratidão e o futuro com generosidade. Pois só é digno de herdar quem compreende que o verdadeiro patrimônio não é aquilo que se possui, mas aquilo que se perpetua com amor e responsabilidade.



Capítulo 7 — O Espírito de Angeja: A Geografia Afetiva

Há lugares que são mais do que geografia — são paisagem da alma, mapas interiores que organizam o invisível do nosso ser. Angeja é um desses espaços: não apenas terra natal de parte dos meus ancestrais, mas núcleo simbólico de uma identidade em espiral. Quando lá retorno, algo em mim se alinha, como se uma bússola interna reencontrasse o norte espiritual. A rua onde meus bisavós e avós viveram, a casa onde meu pai nasceu, os campos onde ecoam passos que não escuto mais — tudo me fala com uma voz que não envelhece.

Os orientais ensinam que certos territórios guardam uma energia vital, um chi ancestral que nos reconhece, mesmo quando já nos esquecemos de nós mesmos. Angeja, para mim, é esse centro. A geografia torna-se teologia quando o espaço deixa de ser cenário e passa a ser presença. E como ensina a Cabala, cada lugar guarda uma centelha — e cabe a nós revelá-la. O espaço onde a vida se fundou é também o lugar onde o sentido pode ser restaurado.

Restaurar o carro em Angeja foi como cravar um marco na terra fértil da memória: não um monumento, mas um gesto vivo. Foi como plantar a árvore de meus pais e antepassados mais uma vez, oferecendo-lhe raízes novas, mas a mesma seiva. A restauração ali não foi apenas prática — foi simbólica, quase ritual. Era preciso que o gesto acontecesse onde tudo um dia começou. Como diria Mircea Eliade, trata-se de um retorno ao axis mundi, o ponto axial onde o tempo e o espaço se fundem em verticalidade.

Em Angeja, o tempo não se mede apenas pelos relógios, mas pelo compasso dos vínculos. Há uma liturgia do cotidiano que sobrevive às gerações — uma forma de rezar com os pés no chão e os olhos na história. Cada pedra nas calçadas, cada árvore no caminho até o rio, parece participar de um saber silencioso. Como dizia Heráclito, “o caráter de um homem é seu destino”, e eu acrescentaria: o lugar que molda esse caráter também.

Angeja é, portanto, mais que cenário de um reencontro: é o sacrário da minha herança. Lá, o carro restaurado repousa como se fizesse parte da paisagem desde sempre. A ferrugem se converteu em ouro simbólico, o desgaste virou oferenda. E ao permitir que a história se renovasse naquele solo, reafirmei o que já intuía: certos lugares não são onde nascemos, mas onde nossa alma decide permanecer. São pontos de convergência entre os que vieram antes e os que virão depois — lugares onde a eternidade se insinua sob o disfarce da simplicidade.

Capítulo 8 — A Ética do Retorno: Gratidão, Legado e Humildade

Deixar o carro nas mãos do primo não foi um gesto de desprendimento apenas — foi um ato de sabedoria, de reconhecimento e de confiança. Como dizia Montaigne, “nada é tão nosso quanto aquilo que oferecemos com nobreza”. Há uma humildade profunda no gesto de entrega quando ela é feita não por renúncia, mas por amor ao que permanece. O carro, agora restaurado, não é mais meu — é de uma linhagem, de uma história, de uma geografia afetiva que precisa continuar viva mesmo na minha ausência.

A gratidão verdadeira não é passiva — ela se traduz em ação, em continuidade, em responsabilidade. Gratidão é devolver ao mundo algo melhor do que aquilo que recebemos. É tornar-se ponte entre os que vieram antes e os que ainda virão. Como ensina o filósofo coreano Byung-Chul Han, em tempos de hiperindividualismo e narcisismo, os gestos gratuitos de confiança e transmissão tornam-se subversivos. Eles abrem espaço para o outro, para o tempo, para o silêncio fértil das tradições.

O legado dos que me antecederam se honra não com palavras isoladas, mas com escolhas enraizadas. Meus Bisavôs Antonio da Silva Pinho e Augusto Cruz, juntamente com meu avô Henrique, meu pai Jorge e todos aqueles que abriram caminho com o suor da dignidade plantaram algo que agora cabe a mim, a meus irmãos e nossos filhos sabermos cultivar. A ética do retorno, nesse contexto, é a ética de quem não consome o passado, mas o fecunda. É a ética de quem, ao voltar, não deseja apenas recordar — deseja renovar.

Esse gesto encarna o espírito de Viktor Frankl: só há liberdade verdadeira quando há sentido. E meu sentido é claro — perpetuar o amor, dar forma concreta à memória, tornar o passado fértil. Restaurar, confiar, partilhar: eis os três verbos que sustentam o que herdei.

Confiar o carro ao meu primo é, pois, reconhecer que a história só se torna sagrada quando é compartilhada. E que a herança verdadeira é aquela que, ao ser oferecida, se multiplica. Como ensina a parábola do talento, é preciso fazer frutificar aquilo que nos foi confiado. E frutificar, aqui, é permitir que a memória se converta em presença, que o cuidado se converta em continuidade e que o amor receba a forma serena da confiança humilde.

Conclusão: O Gesto que Permanece como Legado

Restaurar um carro antigo não é apenas um gesto estético ou funcional. É uma experiência filosófica, espiritual e simbólica — um rito de passagem entre o que fomos, o que somos e o que decidimos perpetuar. A Mercedes Benz 300D, que percorreu estradas portuguesas conduzida por meu pai e agora repousa em Angeja sob os cuidados do primo reencontrado, tornou-se mais do que um automóvel: tornou-se um símbolo encarnado da permanência no tempo e da responsabilidade da memória.

Ela guarda em sua lataria a memória de uma geração que amou com sacrifício, que migrou com coragem, que construiu com dignidade. Ela é testemunho silencioso de uma linhagem que atravessou o Atlântico, que plantou raízes em solo novo sem arrancar as que vinham do solo antigo. Ao restaurá-la, restaurei também a mim mesmo — refiz caminhos interiores, reconectei símbolos e ofereci à minha família um legado palpável, uma bússola simbólica, uma forma de manter acesa a chama ancestral.

Pois tudo aquilo que é restaurado com amor se torna semente de eternidade. A eternidade, nesse caso, não é ausência de fim — é presença viva no que permanece. A Mercedes é hoje mais do que um veículo: é um relicário em movimento, um altar sobre rodas, um testemunho daquilo que vale a pena ser lembrado porque foi vivido com verdade.

Como ensinou Lao-Tsé, “a memória do bem se perpetua na suavidade do gesto”. E este gesto — restaurar, lembrar, devolver — é minha forma de dizer obrigado aos que vieram antes. E de preparar o caminho, com humildade e honra, para os que virão depois. Pois se a história se dobra em ciclos, que ela nos encontre sempre de pé, com as mãos firmes no volante daquilo que importa.

*Jorge Pinho é advogado, procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas - ACLAJ.
imagem noticia-5

Deseja receber O PODER e artigos como esse no seu zap ? CLIQUE AQUI.

Confira mais notícias

a

Contato

facebook instagram

Telefone/Whatsappicone phone

Brasília

(61) 99667-4410

Recife

(81) 99967-9957
Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nosso site.
Ao utilizar nosso site e suas ferramentas, você concorda com a nossa Política de Privacidade.

Jornal O Poder - Política de Privacidade

Esta política estabelece como ocorre o tratamento dos dados pessoais dos visitantes dos sites dos projetos gerenciados pela Jornal O Poder.

As informações coletadas de usuários ao preencher formulários inclusos neste site serão utilizadas apenas para fins de comunicação de nossas ações.

O presente site utiliza a tecnologia de cookies, através dos quais não é possível identificar diretamente o usuário. Entretanto, a partir deles é possível saber informações mais generalizadas, como geolocalização, navegador utilizado e se o acesso é por desktop ou mobile, além de identificar outras informações sobre hábitos de navegação.

O usuário tem direito a obter, em relação aos dados tratados pelo nosso site, a qualquer momento, a confirmação do armazenamento desses dados.

O consentimento do usuário titular dos dados será fornecido através do próprio site e seus formulários preenchidos.

De acordo com os termos estabelecidos nesta política, a Jornal O Poder não divulgará dados pessoais.

Com o objetivo de garantir maior proteção das informações pessoais que estão no banco de dados, a Jornal O Poder implementa medidas contra ameaças físicas e técnicas, a fim de proteger todas as informações pessoais para evitar uso e divulgação não autorizados.

fechar