
Crítica literária - Paulo Gustavo* analisa romance de estreia de Sérgio Buarque*
05/05/2025 -
Dois versos de Camões poderiam servir como uma breve tradução do espírito que domina o monumental romance “Geração D”, de Sérgio Buarque: “Erros meus, má fortuna, amor ardente / Em minha perdição se conjuraram”. É o espírito de uma geração que foi movida por um idealismo romântico, quase religioso, e que, ao chegar à meia-idade, sofreu, para o bem ou para o mal, os efeitos de sua trajetória. Ao florescer “nos vinte anos azuis dos sonhadores” (para citar um verso do poeta pernambucano Austro-Costa,1889–1953), seus membros mergulharam em vinte anos “vermelhos”, enfeitiçados pelas promessas de um marxismo-leninismo que, àquela altura, na Guerra Fria, parecia aquecer corações e mentes e atuar de forma providencial para a queda do imperialismo e do capitalismo. Com a ruptura institucional de 1964 no Brasil, um regime ditatorial militar não hesitaria em recorrer à tortura, a assassinatos e a uma disseminada repressão para teoricamente blindar uma suposta democracia.
Tudo isso fartamente se sabe, mas não será demais lembrar aqui. Buscava-se, com uma messiânica convicção, o paraíso socialista. Muitos jovens optaram pelas armas: os fins violentos justificavam uma futura sociedade pacificada e igualitária. O filósofo liberal Isaiah Berlin, tomando a proverbial imagem de que é necessário quebrar os ovos para se fazer omeletes, no ensaio “A procura do ideal”, apontou que, para a gigantesca “omelete” desejada, “[…] não havia limites para o número de ovos a serem quebrados — essa era a fé de Lênin, Trótski, Mao e, até onde sei, de Pol Pot […] Câmaras de gás, gulags, genocídios é o preço que os homens têm que pagar pelo bem-estar das futuras gerações”. Berlin, constatou, não sem razão, que “Os ovos são quebrados, e o hábito de os quebrar se fortalece, mas a omelete continua invisível”.
Sob o ponto de vista de um narrador onisciente, o romance histórico de Sérgio Buarque (ele próprio um ex-exilado político) mostra um amplo painel geracional, dividido em três partes: “Arrebatamentos”, “Desencontros” e “Maturidade”. Obviamente, as duas primeiras apresentam uma juventude em estado de efervescência existencial, enquanto a “Maturidade” toca no “dia seguinte” que, no caso, confunde-se cronologicamente com a meia-idade. De um ponto de vista biológico, os hormônios em festa jogavam os jovens nos braços de Eros e de paixões amorosas que buscavam conviver com os racionalismos das estratégias políticas; do ponto de vista moral, o idealismo romântico se transformava em outra paixão: o engajamento político.
No período abordado, inspirados, consciente ou inconscientemente, em Reich, Simone de Beauvoir, Marcuse, Kinsey, tantos outros, os jovens punham em prática uma liberdade sexual nunca antes vista: o prazer sexual acessível, libertado e libertário, era de certa forma uma utopia palpável e já cotidiana. As seduções sexuais e intelectuais, reunidas numa só pessoa, como por vezes encontramos no romance, eram, por assim dizer, o sal da vida de guerrilheiros e ativistas, embora, por vezes, elas fizessem emergir conflitos praticamente insolúveis. Para deleite do leitor, é de muitos desses conflitos que Buarque tira os coelhos de sua mágica cartola.
Na ficção buarqueana, outra utopia coletiva e possível, fruto de um pequeno grupo de personagens, foi a criação de um microcosmo de convivência, uma espécie de falanstério: a comunidade Walden, cujo nome homenageia e replica a obra e a experiência vital de Henry Thoreau (1817–1862) de viver só, independente do Estado, em conexão com a natureza e sem os males da civilização industrial. Espírito rebelde e filosófico, Thoreau também teorizou sobre a Desobediência Civil, um tema particularmente sedutor para quem vive num regime autoritário.
É, portanto, sobre um nervoso tricô de fluxos e contrafluxos, de traumas e perdas, de instabilidades dramáticas e políticas, de encontros e desencontros que o narrador move, com acuidade psicológica, os destinos que se cruzam ou se distanciam, enquanto os espaços geográficos nos lembram os lugares de exílio e de outras sociabilidades: lares, masmorras, aparelhos, cafés, bares, universidades e repartições públicas. Todavia, não há âncoras. O nomadismo é, para guerrilheiros e militantes, uma disponibilidade existencial e política. Brasília, Rio, Santiago, Paris, Cuba, mais alguns outros locais, secundários na trama, formam o mapa dos contínuos deslocamentos. O Chile, como se sabe, com o golpe militar ao governo socialista de Salvador Allende, foi um caso à parte, roubando as últimas esperanças dos exilados e militantes e levando-os à França de todas as tribos e de todas as ideias.
“Geração D” é, a despeito de suas quase seiscentas páginas, um livro que imanta o leitor e que se lê quase sem a vontade de que chegue ao fim. Parodiando Guimarães Rosa, podemos dizer que a boa ficção “se dispõe pra gente é no meio da travessia”. Sem prejuízo da unidade de sua trama principal, a narrativa romanesca subdivide-se, quase a cada capítulo, em subtramas e microcontos que nos atraem de imediato e que, como pequenas veredas, correm para o grande rio que tudo atravessa.
Com alguma semelhança técnica ao estilo do escritor chileno Roberto Bolaño (1953–2003) e longe de parecer um estreante no romance (antes só havia escrito contos), Sérgio Buarque navega muito à vontade tanto pelo policialesco quanto pelo lirismo e nos instala rapidamente numa cena e num conflito. Nesse sentido, são exemplares certos começos de capítulo, assim como a habilidade do autor em fazer avançar a trama por meio de numerosos diálogos, justapondo e contrapondo diversas vozes de tonalidades políticas as mais diversas. Assim, sua capacidade de nos surpreender é uma dádiva.
Finalmente, é preciso dizer que ainda teríamos muito a observar sobre essa obra que, ao trazer a ilusão da vida, nos faz pensar no Brasil e nos brasileiros. Uma coisa, no entanto, é certa: nesse belo livro, a imaginação honra a memória, e a poesia honra o romance.
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*Paulo Gustavo, é mestre em Teoria da Literatura pela UFPE, sócio-fundador da Consultexto e membro da Academia Pernambucana de Letras. Dirigiu por três anos a Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco.
**Sérgio C. Buarque é articulista e escritor. Economista com mestrado em Sociologia, foi jornalista da Deutsche Welle (de 1975/1979) e correspondente da IstoÉ na Alemanha (1977) e professor titular da FCAP/UPE (de 1982/2014). Atualmente é consultor em planejamento estratégico.
