
É Findi - "Como Minha Mãe Me Criou" - Crônica, por Romero Falcão*
10/05/2025 -
Sargentona nos dias de hoje
O título do meu texto vem do vídeo de um artista que conta com talento de comediante como sua mãe o preparou na infância para a vida. Depois de assistir, pensei na minha mãe e nas mães dos meninos da minha época de calça curta. Antes de mais nada, é preciso levar em conta que o mundo há 50 anos era outro, e a visão dos pais também. Há entre os dois séculos - 20 e 21 - uma gangorra de valores, cultura, hábitos, costumes. Na minha cabeça de criança havia valores, referências, bem calcados, os quais se deterioraram de maneira assombrosa nas atuais gerações. Algumas pedagogias da mãe das antigas podem soar como ordem unida de uma sargentona nos dias de hoje. Dias em que crianças e adolescentes se fragilizam com "pouco, muito pouco, pouco mesmo".Qualquer coisa é muita coisa até pra adulto jovem. Sim, ao julgamento contemporâneo pode parecer esquisito aqueles traços de educação, mas como disse o escritor Edgar Allan Poe, "Não há beleza rara sem algo de estranho nas proporções".
Não dourava a pílula
Perdi mamãe muito cedo, na segunda infância, mas os poucos anos em que vivi sob suas asas, deu para sentir o quanto me queria independente, resistente, enfrentando dias de escuridão. Educar um filho sempre foi e será um grande desafio seja qual for o século, a década, o ano, a classe social. Mamãe era realista, não dourava a pílula, mostrava à cria as dificuldades do caminho. Exigia atitude, disciplina nas coisas mais banais, que no fundo me preparava para caminhar com os próprios pés. Limpar a casa, lavar banheiro, louça, alimentar de gás os candeeiros, cuidar do jardim, aprender a fazer muda de planta, carregar sacola de feira no mercado São José. Sem reclamar, não adiantava reclamar. Nessa época, ainda não haviam instalado o chip do sucesso, do dinheiro, do engajamento, da medalha sem esforço, da estrelinha brilhante no céu do Instagram, na nossa cachola. O fracasso pisava, dava pontapé, mas a gente aprendia a se defender. Também havia estacas bem fincadas limitando a realidade de cada um. O que podia e não podia comprar, comer, ter. E quando podia, havia a responsabilidade em contrapartida.
A melhor opção era não ficar com fome
Se quisesse ter cachorro - tivemos vários - teria que se responsabilizar pela limpeza do animal: apanhar cocô, dar banho, alimentar. Terminada a brincadeira, guardar os carrinhos de plástico barato. Dobrar a roupa de cama, esticar o lençol do colchão de capim. Lavar as meias, zelar pela farda da escola. Nunca tive condução para ir e voltar da escola, ia no bagageiro de uma Caloi, a pé, ia de qualquer jeito. Não havia escolha para o lanche, nem para o almoço, comia o que botava na lancheira, no prato. Não havia opções, a melhor opção era não ficar com fome. Não desperdiçar comida sacramentava o décimo primeiro mandamento da família. Apesar das dificuldades mamãe mantinha a dignidade da prole. Escreveu Clarice Lispector no livro "A Hora da Estrela ": "Tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta". Menino não tinha vontade, gosto, cara feia. Dar piti seria a pior decisão. Roupa de grife? Eu era feliz nos meus calções de feira. Brinquedo bom se chamava criatividade, pedaço de madeira raspado na pedra se transformava em faca de Tarzan. Dinheiro curto, afeto longo. Existência rústica, sem luxo. Disposição para encarar as adversidades,"desenhar vaca na parede e tirar leite". Lutar, cair e levantar. Mamãe sabia que os filhos não são dos pais, são do mundo, e o mundo é cruel. Talvez ela intuísse que sua passagem seria fugaz, e eu precisava desenvolver precoces asas para voar na tempestade.
*Romero Falcão, é um cronista que se arrisca a fazer poema torto, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo.