
Filosofia, Consumo e a Busca de Sentido nos Tempos de Simulacro - Uma Resposta Filosófica ao Artigo: "Bebês Reborn e o Buraco Existencial dos Nossos Tempos"
17/05/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
“A alma se perde não pelo excesso de bens, mas pela falta de um horizonte superior que os ordene.”
— José Ortega y Gasset
1. Introdução: Do Enigma à Escuta Filosófica
O artigo publicado neste Portal, intitulado “Bebês Reborn – os bonecos que simbolizam o buraco existencial dos nossos tempos”, oferece uma reflexão provocadora sobre um fenômeno contemporâneo que, à primeira vista, pode parecer excêntrico: a crescente adesão aos chamados bebês reborn — bonecos hiper-realistas que simulam recém-nascidos.
Não obstante, o texto de Romero Falcão tenha o oportuno mérito de levantar pontos relevantes sobre o comportamento moderno, esta resposta filosófica busca ampliar o olhar, examinando com mais profundidade as causas, os sentidos e as interpretações possíveis do fenômeno, sempre com respeito ao autor e com espírito de diálogo voltado à elevação do pensamento humano.
A estranheza de um gesto não o invalida filosoficamente — pelo contrário: como ensinava Heráclito, é no espanto que nasce o logos. E, portanto, é justamente por parecer estranho que o fenômeno dos bebês reborn merece mais escuta do que escárnio, mais investigação do que sentença. O que parece absurdo pode, à luz da razão simbólica, conter vestígios daquilo em que nos tornamos e, mais importante, em pistas do que esquecemos ser.
2. O Capitalismo como Bode Expiatório: Uma Causalidade Reduzida
Um dos eixos do artigo é a crítica ao capitalismo, apresentado como responsável por transformar carências emocionais em oportunidades de lucro. Essa crítica, porém, incorre no que podemos chamar de uma causalidade reducionista.
Com efeito, ao afirmar que "o capitalismo não perde viagem, fareja oportunidade de arrancar dinheiro por dentro e por fora da carência de cada um de nós. Primeiro, foi os pais de pets, agora pais de bonecos. Tudo vira negócio, oportunidade. O que não falta, nem faltará, são consumidores, cada vez mais ávidos de preencher o vazio", o texto atribui à lógica de mercado a gênese do vazio existencial, correndo o risco de ignorar fatores mais profundos — especialmente o materialismo moderno e a perda dos referenciais simbólicos e espirituais.
Como advertia Viktor Frankl, o verdadeiro drama do homem moderno não é o excesso de liberdade de consumo, mas a perda do sentido: “A busca de sentido é a motivação primária da existência humana.” Quando essa busca é frustrada, tudo pode virar simulacro — não por culpa do mercado, mas pela ausência de uma direção superior que oriente os desejos humanos.
Aristóteles já ensinava que o desejo sem finalidade degenera em apetite insaciável. O capitalismo, enquanto sistema de trocas e liberdades, pode ser um meio — mas não é, por si só, a origem da decadência espiritual. O que desumaniza não é o mercado, mas o colapso do telos humano.

3. Generalizações Apressadas e Falsas Dicotomias: Contra a Supressão do Particular
O artigo também incorre em uma generalização apressada ao sugerir que todos os adultos que interagem com bonecos reborn estariam imersos em um delírio coletivo.
Ao escrever que “é sintomático que adultos passem a simular o nascimento de bebês de silicone como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo”, o autor transforma casos pontuais em diagnóstico universal, desconsiderando o uso terapêutico, simbólico ou artístico desses objetos.
Essa forma de argumentar ignora o princípio da individualidade dos fenômenos sociais e incorre na falácia da composição, ao atribuir ao todo as características de uma parte. Martin Buber nos adverte que a relação autêntica com o mundo passa pela escuta do “Tu” em cada realidade viva ou simbólica. Se a pessoa se relaciona com o boneco não como um “isso”, mas como projeção de uma ausência real, o gesto precisa ser compreendido na sua singularidade — não ridicularizado como patologia genérica.
Além disso, ao comparar o consumo desses bonecos com a existência de crianças reais em situação de pobreza, o texto configura uma falsa dicotomia moral. A crítica implícita é que, ao comprar um boneco, negligencia-se a realidade de quem sofre. Mas essa oposição não se sustenta logicamente: a empatia por crianças reais e o uso simbólico de bonecos podem coexistir. Julgar a moralidade de um ato por essa comparação é incorrer em simplificação emocional.
Como ensinava Confúcio, o valor de um gesto não está em sua forma exterior, mas na intenção que o anima. Sem examinar a intenção, o julgamento será, sempre, incompleto.
4. O Sintoma e a Causa: Quando o Símbolo Grita por Sentido
A crítica se detém no efeito, mas não investiga suficientemente a causa. O foco recai sobre a excentricidade do comportamento, mas a pergunta mais filosófica seria: o que esse comportamento revela sobre o ser humano contemporâneo?
Ao atribuir ao mercado a origem de tudo, o texto incorre em uma falácia de redução: ignora que o surgimento desses objetos ocorre num contexto de dissolução simbólica, enfraquecimento da vida familiar e perda de referenciais espirituais. O fenômeno dos bebês reborn, nesse sentido, é menos um sintoma de um sistema econômico e mais uma expressão do vazio existencial promovido por um mundo que já não oferece caminhos de sentido duradouro.
Edgar Morin nos lembra que toda civilização precisa de mitos, ritos e imagens que articulem o íntimo e o coletivo. Quando esses símbolos são dissolvidos pela pressa da técnica ou pela banalização da linguagem, surgem formas alternativas de reconstrução simbólica. Joseph Campbell mostra que o mito, mesmo disfarçado, retorna. Os bebês reborn, à sua maneira, são arquétipos em miniatura — reminiscências do cuidado, do vínculo e da perda.
Em vez de ridicularizar essas manifestações, seria mais proveitoso investigá-las com a escuta que os grandes filósofos praticavam. Sinais da época não são apenas sintomas de decadência — às vezes, são gritos por reconexão.

5. Liberdade, Responsabilidade e Sentido: O Julgamento Ético das Ações
O julgamento ético proposto pelo artigo parte do pressuposto de que lucrar com a dor ou com a carência afetiva alheia é, por si, condenável. Trata-se aqui de uma falácia moralista. O lucro, em si, não carrega valor negativo. Um terapeuta também lucra com a dor, assim como um artista lucra com a beleza. O que define a legitimidade do ato não é a remuneração envolvida, mas a intencionalidade e a responsabilidade de quem age.
Platão, em A República, alerta contra o julgamento superficial das aparências. É preciso ir além da sombra, além da caverna, para entender o que verdadeiramente move a alma. Hegel, por sua vez, nos ensina que o espírito se forma na superação dialética — o gesto que parece ridículo hoje pode ser, na verdade, o começo de um movimento de reintegração simbólica.
A crítica parece confundir comércio com exploração, e simbolismo com alienação. Mas é justamente quando faltam vínculos reais que o ser humano busca, ainda que de forma imperfeita, expressões simbólicas de cuidado e afeto. Recusar-se a compreender isso é abdicar da escuta filosófica.
6. Conclusão: A Filosofia como Ponte de Reconexão
A reflexão provocada por Romero Falcão é bastante oportuna, e sua inquietação merece ser acolhida. No entanto, uma crítica que se pretenda coerente e razoável deve ir além da denúncia e buscar o entendimento. Os bebês reborn podem ser vistos não apenas como produtos de uma sociedade doente, mas também como sinais de um mundo que clama, ainda que de forma simbólica, por sentido, vínculo e transcendência.
Se o mercado oferece bonecos, é talvez porque a cultura tenha deixado de oferecer significados. E onde faltam significados, surgem substitutos — ainda que de silicone. Cabe ao pensador de hoje, com base no que há de melhor na filosofia, não julgá-los apressadamente, mas escutá-los com profundidade.
Como ensinava Sócrates, o começo da sabedoria está na pergunta, não na acusação. E só com perguntas honestas, escuta atenta e busca pela verdade é que transformaremos a crítica em caminho, o espanto em sentido — e a inquietação em sabedoria compartilhada.

Epílogo: O Vazio como Herança de uma Cultura Sem Pai
É necessário afirmar, com o devido rigor filosófico e sem concessões ideológicas, que o vazio existencial que afeta o ser humano contemporâneo não nasce da liberdade de mercado ou da lógica do lucro. Ele é, antes, o subproduto de uma desconstrução sistemática de valores que sustentaram a dignidade da vida ao longo de milênios — e essa desconstrução foi promovida, com método e persistência, por correntes ideológicas de matriz majoritariamente marxista e progressista.
O pensamento de esquerda, em suas múltiplas expressões — culturais, acadêmicas e políticas — vem promovendo, há décadas, a corrosão de três pilares essenciais da existência humana: a família, o propósito e a espiritualidade. Ao dissolver esses alicerces, em nome de uma pretensa emancipação total do indivíduo, acabou por produzir um ser cada vez mais livre para desejar, mas cada vez menos capaz de encontrar sentido no que deseja.
A defesa sistemática do aborto como direito absoluto, o controle de natalidade travestido de liberdade sexual, e o estímulo a identidades fragmentadas — muitas vezes desvinculadas de qualquer referencial transcendente — têm como consequência o esvaziamento do sentido de continuidade, filiação e pertencimento que tradicionalmente eram preservados pela família, pela maternidade e pela complementaridade entre os sexos.
Essa fragmentação não é apenas sociológica. Ela é ontológica: rompe-se o elo entre o indivíduo e o mistério da vida. A ideologia substitui o enraizamento, o desejo se torna tirano, e a linguagem simbólica da maternidade — outrora sagrada — se reduz a performance, a desconstrução ou a negação pura e simples.
Enquanto isso, o pensamento de matriz conservadora, liberal ou espiritual — embora também sujeito a críticas e desvios — preserva valores que servem como faróis para a travessia da existência: a centralidade da família, o reconhecimento do valor da vida em todas as suas fases, o respeito à transcendência e o compromisso com a busca de um propósito superior. Esses valores não aprisionam: eles sustentam. Não impedem a liberdade: oferecem-lhe um horizonte.
Como bem lembrava Viktor Frankl, a liberdade sem responsabilidade e sem propósito conduz à angústia. E onde a angústia não encontra palavras, o simulacro ocupa o lugar do símbolo.
O fenômeno dos bebês reborn, portanto, não deve ser compreendido como mero capricho consumista. Ele é um espelho — um espelho que reflete a ausência de vínculos verdadeiros e o desejo ainda vivo, ainda que inconsciente, de reencontrá-los.
A verdadeira reconstrução cultural passa pela coragem de enfrentar essas causas com lucidez e firmeza. Não se trata de impor moralismos ou dogmas, mas de reconhecer que toda civilização que abandona a família, desdenha da maternidade e ri da espiritualidade cava, pouco a pouco, sua própria orfandade.
É tempo de reaprender a linguagem dos símbolos. E, sobretudo, de restaurar o solo onde floresce o humano: o amor, a filiação, a escuta, o mistério, o sentido.
(*) Jorge Henrique de Freitas Pinho é advogado, ensaísta e escritor. Publica artigos sobre cultura, filosofia e espiritualidade.

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