
Olinda Castigada. Sempre Alagada, por Romero Falcão*
19/05/2025 -
Mais bela que a flor
Nunca pesquisei quem foi Olímpio Ferreira Chaves, só sei que foi o nome da minha rua por trinta anos. Cheguei com quatro primaveras numa Olinda, Casa Caiada, de luz de candeeiro, sem água encanada. A infância feliz, nu de cintura pra cima, correndo na campina, rindo feito bobo, subindo em pé de cajueiro, goiabeira, céu de papagaio- pipa- balão de São João. A boca cheia de caroços de goiaba, a nódoa de caju no calção de feira. Cocheira, vacaria, caneco com Nescau sob o peito da vaca. Bois, cavalos, briga de galo, cachorro sendo cachorro. A natureza mais bela que a flor.
Pousada dos bichos rasteiros
Então era inverno, papai fazia cama de madeira, mas nunca construiu a Arca de Noé, para infelicidade dos adultos. Porque para as crianças, a cheia era pura brincadeira- até de baixo d'água a infância é um paraíso- numa água suja, contaminada, que acabava com móveis das casas, matava animal, gente, desabrigava famílias. O dilúvio se repetia quase todos os anos na rua Olímpio Ferreira Chaves, cujo rio cortava seu final. Lembro com precisão das cenas: porco boiando, inchado, cavalos desesperados, o olhos estufados pedindo socorro. As cobras correndo pra dentro das casas que não foram tomadas pela fúria do rio Beberibe, como a minha, de primeiro andar, pousada dos bichos rasteiros. Mas teve uma cheia- salvo engano a de 1975- que a mesa da sala virou os pés na água. Recordo também, meus pais e irmãos saindo de bote, eu e a cadela Pandora no meio, íamos procurar abrigo dos parentes. Vizinhos desolados, isolados no aguaceiro.Cresci vendo Olinda castigada, sempre alagada. Me tornei homem, daí a enchente também ganhou maioridade e indignação deste que vós escreve.

Tijolinhos na travessia
Um salto no tempo, nessas últimas chuvas, vejo na televisão uma jornalista cobrindo a descoberta rua Olímpio Ferreira Chaves. Por Deus! Inacreditável, depois de cinquenta anos, me vejo na pele, na cólera , no risco da leptospirose, nos pés que se metem na lama , e a cabeça no vazio da esperança.Olímpio Ferreira Chaves está envergonhado, molhado até os ossos, onde estiver. Meu menino se assanha pra colocar tijolinhos na travessia da rua.Leva um cocorote ."Tomara, Deus tomara", que a engenharia levante um ponto final na triste realidade desses moradores.
*Romero Falcão, cronista, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo
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