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Debate sobre Ensaio publicado em O Poder - Quando a Crítica nos Ajuda a Pensar Melhor

21/05/2025 -

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Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

“O pensamento não tem dono. Ele apenas visita os que se dispõem a recebê-lo com humildade, escuta e coragem.”

1. Introdução: A Filosofia Começa no Segundo Passo

Quando publiquei o artigo 'O Vazio e o Verbo: Filosofia, Consumo e a Busca de Sentido nos Tempos de Simulacro', tinha consciência de que adentrava um terreno simbólico delicado, onde o estranho e o patético convivem com o trágico e o revelador. Sabia que tocaria feridas abertas do nosso tempo — mas não esperava que as respostas viessem revestidas de tanta densidade, sobriedade e generosidade filosófica. Houve quem se reconhecesse no diagnóstico e o endossasse com entusiasmo. Outros, tomados de perplexidade, enxergaram no fenômeno dos bebês reborn um espelho desconfortável dos desvios afetivos e espirituais do presente. Mas, como sempre, o que mais me alegra — e me obriga a subir um degrau na reflexão — são os contrapontos cuidadosamente formulados, sustentados por fundamentos e movidos por coragem intelectual.

Entre as muitas reações que recebi, destaco com sincera gratidão duas que ultrapassaram o mero comentário: as de Júlio Cezar Brandão, que apontou com veemência os limites do argumento simbólico, e a de Luiz Castro, cuja leitura filosófica e espiritual revelou maturidade rara e apurada sensibilidade política. Ambas iluminaram aspectos que merecem ser aprofundados — e não apenas respondidos.

Responder, aliás, não é apenas um gesto de polidez dialógica. É, sobretudo, um ato filosófico no sentido mais elevado do termo. O pensamento, como lembrava Martin Buber, só ganha corpo quando há um "Tu" real que o convoca ao encontro. Não é no monólogo que se forja a verdade, mas no confronto generoso com o outro — com seu olhar, suas objeções, suas feridas. Como ensinava Montaigne, "o contraditório afia a lâmina do pensamento". E como nos advertia Santo Agostinho, "não se conhece a verdade sem amar aquele com quem se busca". Escutar não é ceder. É oferecer hospitalidade à alteridade — e permitir que ela nos revele os limites, mas também as potências, do que afirmamos.

Por isso, se há algo que não temo é esse embate elevado, onde a escuta não é fraqueza, mas expressão de fortaleza interior. O filósofo não é o que vence o debate, mas o que o transforma em ponte. E esse é o espírito com que retorno agora à reflexão — não para dizer a última palavra, mas para, com reverência e firmeza, dar continuidade à busca.

2. A Intervenção de Júlio Cezar Brandão

"Acho que a comparação entre o animal (pet), um ser vivo com emoções, por exemplo, com um bebê de silicone, um ser inanimado e sem emoções, não faz sentido algum. Um boneco é simplesmente um boneco, inexiste troca de afeto. Que se colecione tantos quantos o dinheiro possa comprar. Mas, daí achar que um boneco seja capaz de substituir uma criança, é sinal de problema, e não de descoberta.

O epílogo do texto de forma indireta aponta que a loucura do momento é culpa do pensamento progressista por promover ‘a corrosão de três pilares essenciais da existência humana: a família, o propósito e a espiritualidade’. Eu poderia citar aqui inúmeras condutas dos ditos ‘conservadores brasileiros’ que têm ajudado bastante a corroer a família e a espiritualidade.

O epílogo, portanto, virou panfletagem ideológica!"

2.1. A Contribuição Direta de Júlio Brandão: O Boneco não Substitui o Vivo

Júlio Brandão ofereceu uma crítica necessária à analogia entre animais de estimação e bebês reborn: um pet é um ser vivo, sensível, capaz de manifestar dor, reciprocidade e afeto; um boneco, por mais sofisticado que seja, permanece inerte — desprovido de vida, de resposta e de alteridade. Trata-se, como ele bem observou, de uma distinção ontológica intransponível — e com a qual concordo sem reservas. Em nenhum momento minha intenção foi confundir planos. O que me propus a refletir foi algo anterior: o que há de tão profundo na alma humana que a leva, por vezes, a investir afeto em algo que sabe ser irremediavelmente artificial?

Essa pergunta não pertence ao campo da clínica nem da sociologia, mas da filosofia — mais precisamente da ontologia do desejo e da carência simbólica. Pois o que está em questão não é o objeto amado, mas o sujeito que ama — e a estrutura do mundo que o cerca. Como ensinava Viktor Frankl, “a busca de sentido é a motivação primária da existência humana”. Quando essa busca é frustrada, ela não se extingue — apenas desloca-se para novos alvos, muitas vezes substitutivos, frágeis e simbólicos.

Esses simulacros — que podem ser bonecos, personagens, fetiches ou imagens — não nascem do excesso de fantasia, mas da falta de vínculos significativos. Como advertia Aristóteles, “a natureza abomina o vácuo”. Onde não há relações verdadeiras, criam-se presenças artificiais. E não por futilidade, mas por necessidade de sobrevivência afetiva.

É por isso que o fenômeno não deve ser ridicularizado, mas compreendido. Aquilo que muitos rotulam como patologia pode ser, na verdade, a forma mais desesperada de preservar a capacidade de amar em meio a um mundo que corroi os vínculos reais. Como observou Edgar Morin, “a barbárie não é ausência de cultura, mas a degeneração dos seus símbolos”. O boneco, nesse contexto, não é uma excentricidade: é um espelho. Um reflexo trágico — e, por vezes, profundamente comovente — da solidão cultivada por uma era que já não sabe mais como habitar o outro.

O boneco, nesse contexto, não é uma excentricidade nem uma fantasia vazia: é um espelho simbólico da solidão afetiva que se alastra sob o verniz de uma sociedade funcional. Um reflexo trágico — e, por vezes, comovente — de uma era que anestesia as relações enquanto multiplica conexões. É preciso coragem para olhar esse espelho e perguntar, não “por que alguém ama um boneco?”, mas “o que nos tornamos para que um boneco pareça mais seguro do que um ser humano?”

3. A Intervenção de Luiz Castro

A esse questionamento se soma a contribuição de Luiz Castro, que enriquece o debate com outro tipo de profundidade: a espiritual. Seu comentário não apenas responde, mas reposiciona o olhar. Longe de polarizações ideológicas apressadas, Luiz nos convida a enxergar os limites estruturais de todos os sistemas — sejam eles de esquerda ou de direita — quando se afastam do solo comum da espiritualidade e da ética, conforme se pode ver abaixo:

"Prezado Jorge Pinho,

Entendo, como Chiara Lubich, que nenhum dos dois eixos — o marxista e o capitalista — está com o domínio da verdade, que está acima deles, além deles, além de nós, mas dentro de nós.

Os cristãos buscamos a resposta noutro campo: o espiritual. Você e eu podemos evitar as armadilhas do ideologismo sem abrir mão da participação, do compromisso e da ação concreta no campo político.

Como bem sabemos, o mundo estava longe de ser um paraíso antes de Karl Marx existir. E, embora ele tenha realizado uma inovadora análise macroeconômica do capitalismo de sua época, os resultados práticos do ‘comunismo’, uma vez implantado em diversos países, ficaram muito distantes de ser paradisíacos. Do outro lado, também, o que Adam Smith preconizou com o predomínio da política liberal não trouxe aos países capitalistas a realização da quimera de um Eldorado para a maioria das pessoas.

Penso que as ideologias podem emblematizar, refletir, mas não necessariamente explicar o que aconteceu — ou continua a acontecer — na humanidade.

Ao que tenho refletido existencialmente, há outros fios condutores, mais ou menos camuflados, nesse processo evolutivo da humanidade. E o conflito entre o bem e o mal tem raízes muito profundas.

Meramente defender capitalismo ou socialismo como soluções — ou como algozes — continua sendo, no meu humilde modo de enxergar, uma leitura reducionista."


3.1. A Visão Ampla e Espiritual de Luiz Castro: Além das Ideologias

A contribuição de Luiz Castro não apenas honra o debate — ela o amplia. Sua leitura é marcada por uma elegância intelectual rara em tempos apressados, e por uma espiritualidade que ilumina sem dogmatizar. Com equilíbrio e honestidade, Luiz lembra que tanto o marxismo quanto o liberalismo, em suas versões doutrinárias, falharam em responder ao drama existencial humano. De um lado, o comunismo, quando posto em prática, gerou opressão e miséria em nome de uma redenção histórica que nunca chegou. De outro, o liberalismo absolutizado produziu mercados eficientes e relações empobrecidas, convertendo a liberdade em indiferença e o indivíduo em consumidor solitário.

Concordo com ele. Mas insisti — e aqui reitero — que é no pensamento progressista contemporâneo, especialmente em suas versões mais fiéis às raízes de Marx, Gramsci e Foucault, que identifico o esforço mais sistemático e bem-sucedido de desconstrução dos pilares simbólicos da civilização ocidental: a família como espaço estruturante, a transcendência como fundamento moral, e o sentido como eixo que ordena os desejos e limita o ego.

Importa aqui distinguir — com toda justiça — entre as pessoas progressistas que preservam valores espirituais e as correntes ideológicas que instrumentalizam o simbólico para negá-lo. Minha crítica não se dirige a indivíduos de esquerda espiritualizada, que muitas vezes defendem causas nobres com genuína compaixão. O que critico é a arquitetura filosófica de certas vertentes da esquerda pós-moderna, que se apresentam como emancipadoras, mas operam — com método e paciência revolucionária — uma substituição das referências culturais profundas por narrativas fluidas, instáveis e, no fim, desumanizantes.

É nesse contexto que introduzi a imagem do “ovo de cuco filosófico” — a metáfora de um discurso que parece protetor, mas que, uma vez acolhido no ninho da cultura, expulsa o que havia de autêntico e implanta a sua negação. A espiritualidade é então tratada como performance estética; o afeto, como expressão de identidade; e a liberdade, como ruptura absoluta com qualquer forma de pertencimento. A linguagem é descolada do real. O símbolo, esvaziado de enraizamento. A tradição, desmontada em nome de uma reinvenção infinita do eu.

Luiz está certo também ao apontar o papel corrosivo do cientificismo moderno — essa tentativa de submeter todos os fenômenos humanos à lógica da mensuração e da explicação material. Mas é preciso reconhecer que foram as doutrinas progressistas que institucionalizaram essa dessacralização em larga escala, especialmente no sistema educacional, nas universidades, nos meios de comunicação e nos organismos culturais. A crítica à tradição virou virtude. A dúvida sobre o sagrado, sinal de inteligência. A desconstrução do permanente, exigência do progresso.

A exceção notável — e paradoxal — tem sido a internet. Por mais caótica, agressiva ou vulgar que às vezes seja, ela ainda permite alguma circulação de pensamento livre, fora da hegemonia dos aparelhos institucionais. É território aberto, onde o dissenso ainda respira, e onde narrativas oficiais são, ao menos, contestáveis. Como dizia Blaise Pascal, “há mais verdade num homem que duvida com liberdade do que num sistema que afirma com arrogância”. E talvez seja por isso que, apesar de tudo, ainda podemos escrever — e pensar — com alguma esperança.

4. O Segundo Nível do Debate: Entre Escuta e Fundamento

As críticas que recebi não apenas me agradaram — elas me desafiaram no melhor sentido da filosofia: ofereceram a rara oportunidade de retornar às próprias ideias não para negá-las, mas para reencontrá-las em um plano mais profundo, onde o fundamento se revela com mais clareza. Pois pensar, como nos ensina Platão, é recordar aquilo que já intuíamos em silêncio, mas que a escuta do outro desperta e exige que nomeemos.

Se algo ficou ainda mais evidente após esse diálogo é que o problema contemporâneo não reside nos afetos em si, mas no lugar simbólico de onde eles brotam e na finalidade que os orienta. O homem pode amar um objeto? Sim — e não por desequilíbrio, mas por desamparo. Quando o vínculo real se torna impossível ou ausente, o afeto não desaparece: ele se redireciona. Como ensinava Santo Tomás de Aquino, “a vontade não repousa senão no bem amado” — e quando não encontra o bem real, contenta-se com um sucedâneo, um ídolo, um reflexo.

A pergunta, portanto, não é sobre o boneco, mas sobre o vazio que o antecede. O gesto de investir afeto em algo inanimado — como no caso dos bebês reborn — não pode ser reduzido à caricatura ou ao escárnio. É, muitas vezes, um grito silencioso de alguém que ainda quer amar, mas não sabe mais onde ou em quem pousar esse amor. Como advertia Simone Weil, “a desordem da alma começa quando o amor não encontra onde repousar”. E o que vemos aqui é justamente isso: um amor sem pouso — um desejo ainda vivo em meio a uma cultura que desmantelou seus abrigos.

Permita-me aqui um parêntese, ou melhor, uma ampliação simbólica. No filme O Náufrago, Tom Hanks — um Robinson Crusoé do mundo moderno — converte uma bola de vôlei em interlocutor, confidente e companhia. “Wilson” torna-se sua âncora afetiva em meio ao deserto do silêncio. Todos nos comovemos quando ele a perde — não por ingenuidade, mas porque entendemos, com o coração e não apenas com a razão, que o vínculo simbólico era a última fronteira da sua humanidade.

Mas o que dizer das grandes cidades de hoje? Milhões transitam entre multidões e, ainda assim, vivem como náufragos do concreto: cercados de corpos e carentes de laços. Se no caso de Chuck Noland o silêncio era imposto pela geografia, no nosso mundo ele é existencial — é o silêncio interior que grita em meio à hiperconectividade vazia. Como advertiu Zygmunt Bauman, “a solidão moderna não é a ausência de pessoas, mas a impossibilidade de construir vínculos duradouros”.

O boneco, a tela, o algoritmo — todos esses simulacros ocupam hoje o lugar que um dia foi reservado à presença viva, ao “Tu” que Buber evocava como condição do “Eu”. O drama não está no objeto escolhido, mas na ausência da relação que deveria tê-lo tornado desnecessário. E quando isso se generaliza, não é mais uma excentricidade individual: é um sintoma civilizacional.

5. Conclusão: Continuamos Pensando Juntos

Não respondo a Júlio e a Luiz para ter a última palavra — porque a última palavra, quando é imposta, geralmente é a mais pobre. Respondo porque reconheço, no gesto de ambos, aquilo que há de mais nobre na tradição filosófica: o valor da palavra partilhada, que não busca encerrar o pensamento, mas ampliá-lo; não reivindica autoridade, mas promove hospitalidade intelectual. A filosofia verdadeira não floresce na unanimidade nem se realiza no eco — ela vive do contraste fecundo, da tensão criativa entre consciências que se respeitam sem se dissolverem.

Como dizia Heráclito, “o conflito é o pai de todas as coisas”. Mas esse conflito, quando sustentado pela escuta autêntica, deixa de ser antagonismo e se torna convite: convite à travessia comum de uma verdade que nunca está inteiramente de um lado só. Escutar, nesse contexto, não é capitular: é reconhecer que a verdade não é um monólogo soberano, mas uma construção no entre-lugar da linguagem e da presença do outro. Como nos ensina Simone Weil, “prestar atenção é a forma mais pura e generosa da generosidade”. E só quem escuta com rigor pode transformar a crítica em caminho e a divergência em ponte.

Aos que discordam com grandeza, aos que pensam com liberdade e escrevem com honestidade de espírito, minha gratidão. Que sigamos pensando juntos — mesmo e sobretudo quando divergimos. Pois é nesse tipo de encontro que a verdade, ainda que fragmentária, cintila como faísca entre espadas afiadas, provocando luz e não apenas atrito.

E se é verdade — como disse certa vez ao querido amigo Rogério Perales, cuja sensibilidade filosófica honra cada palavra lida — que “escrever é encontrar quem reverbera”, então este artigo, como o anterior, não foi escrito para vencer uma disputa retórica, mas para tocar cordas silenciosas nos que ainda têm fome de sentido. Escrevo não para conquistar adeptos, mas para convocar consciências. O que busco não é consenso, mas consonância — aquela harmonia profunda que não precisa de igualdades, mas de ecos legítimos.

Se, entre os muitos que leem, ao menos um se sentir tocado no lugar onde o pensamento se encontra com a consciência e o símbolo com o silêncio, então este texto já terá cumprido o mais alto dos seus propósitos. Pois quando uma ideia começa a respirar em outro ser humano, ela deixa de ser posse e passa a ser ponte. Nesse instante raro, a escrita cumpre seu destino mais nobre: não informar, mas formar; não ocupar espaço, mas abrir horizonte.

*Jorge Henrique de Freitas Pinho.
Advogado, ensaísta e escritor. Publica artigos sobre cultura, filosofia e espiritualidade.

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