
Ensaio - A ameaça paira sobre todos nós - O Perigo da Censura Velada nas Redes Sociais
29/05/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
"Quando a liberdade de expressão se torna a última linha de defesa da democracia, estamos no exato ponto de inflexão onde as civilizações escolhem entre a tirania e a verdade."
— Jorge Pinho
1. Introdução: A Última Trincheira da Liberdade
Quando a liberdade de expressão passa a ser tratada como um luxo ou uma ameaça, e não como o fundamento irrenunciável da convivência democrática, é sinal de que atravessamos um ponto de inflexão histórico. O que antes era um direito inegociável torna-se, gradualmente, objeto de barganha institucional, restrição normativa ou vigilância disfarçada. Este é o terreno fértil onde a censura se apresenta não com fardas ou decretos, mas com argumentos palatáveis, envoltos em boas intenções.
A recente petição da Advocacia-Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal (STF), solicitando medidas urgentes para regular as redes sociais, deve ser compreendida não apenas como um episódio jurídico, mas como um sintoma filosófico. Estamos diante da tentativa de redesenhar os contornos da liberdade sob o pretexto de protegê-la. Quando se pretende responsabilizar plataformas por conteúdos sem ordem judicial, quando se invocam exemplos extremos para justificar regulações permanentes, e quando se substitui o parlamento por tribunais na criação de normas, algo essencial se rompe: a confiança no Logos como critério último de discernimento público.
Este ensaio, portanto, busca analisar com rigor os argumentos utilizados pela AGU, identificando suas falácias lógicas, seus riscos institucionais e sua carga simbólica. Mais do que uma defesa da liberdade de expressão, propomos aqui um alerta: o mundo caminha rapidamente para formas sutis e sofisticadas de controle. E, como advertiu Václav Havel, o drama da modernidade não é mais o da repressão brutal, mas o da adesão voluntária à mentira coletiva.
Por isso, não é demais dizer que quando a liberdade de expressão se torna a última linha de defesa da democracia, estamos no exato ponto de inflexão onde as civilizações escolhem entre a tirania e a verdade.

2. Liberdade de Expressão em Risco
A proposta da AGU de responsabilizar plataformas digitais por conteúdos considerados ilícitos, mesmo sem ordem judicial prévia, como aventado no voto do ministro Dias Toffoli, instaura um precedente gravíssimo de censura prévia em solo constitucional. Tal iniciativa não apenas colide com o artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal de 1988 — que consagra a liberdade de expressão e veda qualquer forma de censura estatal — como também compromete o ethos democrático que sustenta a própria legitimidade da república.
Por outro lado, essa proposta afronta não apenas o artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal de 1988, mas também o artigo 220, que afirma com clareza intransigente que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”. Ao transferir para as plataformas digitais o ônus de julgar previamente o que deve ou não circular, sem decisão judicial, cria-se, na prática, um mecanismo de censura indireta — justamente o que a Constituição procurou vedar em sua inteireza.
Como adverte Hannah Arendt, "o começo da liberdade é a capacidade de dizer 'não'". Suprimir essa capacidade em nome de uma pretensa segurança é entregar o futuro ao medo, não à razão. Martin Buber, por sua vez, lembra que a verdadeira relação eu-tu só pode florescer onde há escuta autêntica — e esta não se constrói sob coerção institucional. Já Viktor Frankl, sobrevivente de regimes onde a palavra era um risco, sustentava que "entre o estímulo e a resposta há um espaço. Nesse espaço reside a liberdade humana". Reduzir esse espaço é reduzir a própria humanidade.
Do ponto de vista filosófico-jurídico, a proposta também encarna uma inversão perigosa: transforma-se o princípio de presunção de licitude da fala em uma presunção de culpa difusa, sujeita ao juízo tecnocrático de plataformas pressionadas por regulação ambígua. Como diria Aristóteles, quando se abre mão do justo pela via do excesso, cai-se inevitavelmente na injustiça por excesso de zelo.

Ademais, a tentativa de esvaziar o artigo 19 do Marco Civil da Internet — que estabelece, com sabedoria jurídica e equilíbrio democrático, a exigência de decisão judicial para a remoção de conteúdos — representa uma ameaça direta à segurança jurídica e às garantias fundamentais reconstruídas com sacrifício após os longos anos de exceção institucional. Substituir o devido processo por juízos sumários de legalidade é dissolver a fronteira entre o lícito e o ilícito na névoa da conveniência política.
Como advertiu Montesquieu, "uma injustiça feita a um só é uma ameaça feita a todos". A erosão progressiva de um princípio pode parecer técnica ou burocrática, mas o seu efeito real é existencial: quando a lei se torna ambígua, a liberdade se torna frágil. E como bem apontou Edgar Morin, os sistemas complexos não ruem de uma vez — eles se desfazem em sutilezas. Nesse sentido, a censura não se torna mais legítima por vestir o traje da boa intenção: apenas se torna mais insidiosa, pois age sob o disfarce da virtude.
Como ensinava Confúcio, “quando as palavras perdem o seu sentido, os homens perdem a sua liberdade” — pois o primeiro passo do totalitarismo não é calar pela força, mas distorcer o critério da verdade até que o silêncio se torne desejável.
3. Instrumentalização de Casos Isolados
A AGU sustenta seu pedido em episódios como fraudes no INSS, o "desafio do desodorante" e a venda de medicamentos não autorizados pela Anvisa. Embora preocupantes, esses casos são exemplos pontuais, que não justificam a implantação de um regime de exceção digital.
Trata-se de um caso típico de paralogismo por generalização apressada: a partir de exemplos pontuais e emocionalmente impactantes, pretende-se legitimar uma mudança estrutural no regime jurídico das comunicações, convertendo exceções dramáticas em regras permanentes. É o triunfo da emoção sobre o critério, da exceção sobre a prudência institucional. Tal argumento, além de logicamente falacioso, é politicamente perigoso: quem legisla a partir do espanto, frequentemente o faz em prejuízo da razão.
Aristóteles, ao distinguir o que é justo por natureza do que é justo por convenção, advertia que o legislador deve governar pela mediania, e não pelos extremos. Ao inverter essa lógica, abre-se caminho não para o bem comum, mas para a manipulação da norma conforme as paixões do momento. Como afirmou Etienne de La Boétie, “é pelo hábito da servidão que os homens passam a desejá-la”. E o primeiro hábito da servidão moderna é ceder ao argumento do medo como fundamento para renunciar à liberdade.
Há ainda um aspecto ético inescapável: setores do espectro político que historicamente denunciaram os abusos da censura estatal, da repressão ideológica e da vigilância institucional — muitas vezes com razão — agora se mostram dispostos a legitimar os mesmos instrumentos, desde que voltados contra seus adversários. A esquerda, que outrora se opôs vigorosamente ao endurecimento penal e à vigilância estatal, agora busca impor sanções severas e amplas restrições, não contra crimes comprovados, mas contra discursos que julga inconvenientes ou perigosos.
Essa inversão revela não apenas uma incoerência, mas uma instrumentalização do aparato normativo segundo conveniências circunstanciais. Como diria Allan Bloom, “a intolerância moderna se esconde por trás do véu da tolerância”. E como advertia George Orwell, "se a liberdade significa alguma coisa, é o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir". Quando o direito penal é suavizado para os delitos que incomodam a esquerda, mas a censura é endurecida para opiniões que ela rejeita, não estamos mais diante de um projeto de justiça — mas de hegemonia moral disfarçada de legalidade.
É como se parte da esquerda — antes guardiã intransigente das liberdades — agora se comportasse como se sentisse saudade da censura imposta nos anos de chumbo. Não mais como vítima, mas como aspirante a curadora moral da nova ordem digital. Esqueceram, talvez, todo o sacrifício político, intelectual e geracional que culminou na Constituição de 1988, onde se inscreveu com clareza solar a vedação à censura prévia. Esqueceram que a liberdade não foi uma concessão do Estado, mas uma conquista da sociedade contra o autoritarismo — seja ele de farda ou de toga, de direita ou de esquerda.
Como alertava Karl Popper, “aqueles que estão dispostos a sacrificar a liberdade em nome da segurança acabarão por perder ambas”. E, como ensinava Tocqueville, o perigo da democracia não é o despotismo escancarado, mas o paternalismo sutil que sufoca as vozes sob o pretexto de protegê-las. Quando a esquerda adota os métodos que outrora combateu, não apenas trai seus próprios princípios fundadores — ela os banaliza.

4. O Papel do Congresso Nacional
Ao pressionar o Supremo Tribunal Federal para antecipar medidas regulatórias por meio de tutela de urgência, a AGU incorre em uma grave desvirtuação da arquitetura constitucional brasileira: substitui-se o poder representativo pelo poder técnico-jurisdicional, violando o princípio republicano da separação dos poderes. A democracia não se consolida por atalhos. Questões estruturais como a regulação da liberdade no espaço digital exigem debate parlamentar, deliberação pública e controle popular. Do contrário, corre-se o risco de transformar o Judiciário em legislador por omissão — ou pior, por conveniência.
Como advertia Rui Barbosa, “a pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. A Corte Constitucional existe para guardar a Constituição, não para governar por ela. Quando o STF assume a função de legislador substituto, desloca-se da sua missão de intérprete para a de agente de poder. E como ensinava Hegel, todo excesso de forma gera um retorno violento do conteúdo: tentar regular a linguagem sem representar o povo é abrir caminho não para a ordem, mas para a resistência. Nesse contexto, a legitimidade jurídica se converte em fragilidade institucional, e a autoridade perde seu lastro simbólico.
Ademais, delegar ao Judiciário o papel de legislador, ainda que sob a justificativa da inércia parlamentar, rompe gravemente o equilíbrio entre os poderes e fragiliza o próprio princípio da legitimidade democrática. A Constituição de 1988 não conferiu ao Supremo Tribunal Federal o poder de reger a sociedade em matéria de política pública, mas sim de resguardar o pacto normativo que dela emana. Substituir o processo legislativo — com sua pluralidade, transparência e escuta social — por decisões monocráticas ou por julgamentos de natureza ativista, ainda que bem-intencionados, é corroer silenciosamente a soberania popular.
Não se pode naturalizar que a omissão legislativa seja suprida por decisões monocráticas ou interpretações extensivas de ministros. Como alerta Luigi Ferrajoli, quando o Judiciário passa a ditar normas em nome da proteção de direitos, mas sem respaldo democrático, ele desvirtua o próprio sentido do constitucionalismo garantista — substituindo a legalidade pela discricionariedade iluminada
Como ensinava Alexis de Tocqueville, “há momentos em que o poder judiciário, ao se tornar legislador, começa a perder sua imparcialidade e a corromper sua função”. A Corte Constitucional não é um oráculo de sabedoria superior, mas um instrumento da vontade constitucional do povo. Ao converter-se em instância reguladora da linguagem e do discurso, o STF excede não apenas sua função técnica, mas sua própria legitimidade simbólica. E como advertia Aristóteles, a justiça que se afasta de sua forma própria degenera em arbítrio — e todo arbítrio, ainda que ilustrado, é um risco à liberdade.
5. Riscos de Censura e Controle Estatal
A responsabilização direta das plataformas por conteúdos de terceiros, sem a necessária mediação judicial, instaura um mecanismo de censura indireta profundamente perverso: ao temerem sanções estatais, as empresas digitais passam a adotar posturas preventivas que favorecem a remoção indiscriminada de conteúdos — não com base em sua ilicitude, mas em seu potencial de incômodo ao poder vigente. Em nome da precaução, o pluralismo é sacrificado, e a crítica legítima, silenciada. Surge, assim, o fenômeno da autocensura induzida, mais insidiosa do que a censura direta, pois disfarçada sob o verniz da autorregulação.
Como advertiu George Orwell, “a maneira mais eficaz de destruir as pessoas é negar e obliterar a compreensão que elas têm de sua história”. E isso se faz não apenas apagando fatos, mas sufocando o direito de dizê-los. Sob a aparência de zelo com o discurso, abre-se caminho para o regime do medo: medo de errar, medo de incomodar, medo de ser punido por falar. Nesse contexto, como ensinava Martin Buber, o verdadeiro diálogo se extingue — e resta apenas a comunicação estratégica, a fala que busca agradar, não a verdade. E sem verdade compartilhada, não há comunidade política: apenas controle algorítmico de impressões, e silêncio pactuado de consciências.
O fenômeno do overblocking — a remoção excessiva de conteúdos pelas plataformas digitais — compromete diretamente o pluralismo, o direito ao dissenso e a própria existência do debate público. Trata-se de um silenciamento não declarado, mas eficaz, que mina a diversidade de opiniões e enfraquece a democracia. Como ensinou George Orwell, "a liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro".
Inúmeros criadores de conteúdo têm relatado casos de ocultação e cerceamento de seus materiais devido às limitações impostas pelas próprias redes sociais. Esses relatos incluem a desmonetização de vídeos, a redução do alcance de postagens e até mesmo a suspensão de contas, muitas vezes sem uma justificativa clara ou transparente. Tais práticas já geram preocupações significativas sobre a liberdade de expressão no ambiente digital.
Agora, imagine-se a ampliação desse cenário com a interferência estatal conforme pretendem a AGU e o Governo Brasileiro. A imposição de responsabilidades legais às plataformas por conteúdos de terceiros, sem a mediação judicial adequada, pode intensificar ainda mais o overblocking. As empresas, temendo sanções, tenderiam a adotar políticas ainda mais restritivas, removendo conteúdos legítimos por precaução. Isso resultaria em um ambiente digital cada vez mais homogêneo, onde vozes dissonantes seriam silenciadas não por violarem normas, mas por representarem riscos potenciais às plataformas.
Como advertiu Hannah Arendt, "o que torna possível a dominação total é o fato de que as pessoas não acreditam mais em nada, nem mesmo no que veem com seus próprios olhos". A censura velada, promovida por políticas de overblocking, contribui para essa descrença, corroendo os alicerces da democracia e da liberdade de expressão.
A censura velada, como descreve Carlos Blanco de Morais, configura-se quando o Estado, ao evitar declarar a censura de modo frontal, opera mecanismos de controle indiretos, transferindo à iniciativa privada a função de reprimir ideias. Trata-se de um desvio da racionalidade constitucional, onde o medo e o risco jurídico se tornam ferramentas mais eficazes que a própria proibição legal.
Assim, é imperativo que qualquer iniciativa de regulação das redes sociais seja conduzida com cautela, garantindo a proteção dos direitos fundamentais e evitando a implementação de medidas que, sob o pretexto de combater abusos, acabem por restringir indevidamente a liberdade de expressão e o debate público.
A censura velada, portanto, não é um conceito retórico — é uma realidade jurídico-política cada vez mais reconhecida. Como aponta Carlos Blanco de Morais, em suas análises sobre regimes híbridos e “racionalidades desviantes do constitucionalismo”, trata-se de uma forma de poder “normativamente disfarçada”, que, embora opere fora da censura formal, impõe restrições de fato ao pensamento divergente por meio de sistemas de incentivo, medo e exclusão algorítmica. Nessa forma de controle, o que se proíbe não é o conteúdo explícito, mas o alcance da palavra livre.
6. Diálogo com Críticas e Reflexões dos Leitores
Um querido amigo trouxe uma observação pertinente: a Europa, de fato, implementou o Digital Services Act (DSA), que regula plataformas digitais com o objetivo declarado de garantir transparência, proteção aos usuários e responsabilidade algorítmica. No entanto, é preciso não confundir regulação democrática com controle autoritário disfarçado de proteção pública. O DSA foi aprovado pelo Parlamento Europeu após amplo debate, com participação de múltiplos setores da sociedade civil, especialistas técnicos, juristas e parlamentares eleitos. Seu processo legislativo obedeceu aos princípios fundamentais do Estado de Direito: publicidade, representatividade e revisão.
O que se pretende no Brasil, ao contrário, é uma interferência vertical, conduzida por órgãos do Executivo e do Judiciário, sem aprovação legislativa, sem ampla escuta pública e sem balizas claras. Trata-se de uma regulação por tutela, e não por deliberação. Como alertava Habermas, “a legitimidade nasce do discurso racional em espaços públicos de deliberação” — não da imposição tecnocrática de decisões que afetam diretamente a esfera pública do cidadão.
Dizer que “a Europa também regula” não justifica que se façam aqui, por meios atípicos, os mesmos atos que por lá foram cuidadosamente debatidos. Como ensinava Montaigne, “é mais fácil emprestar os gestos que as razões”. E copiar os gestos de uma democracia madura sem compreender as razões de sua prudência é um erro que leva não à regulação virtuosa, mas à censura oportunista.
No Brasil, deseja-se que tais medidas venham não do Parlamento, mas do Judiciário — por decisões monocráticas ou por pareceres de instâncias técnicas que, embora revestidas de autoridade funcional, carecem de legitimidade representativa. Trata-se de uma inversão perversa do princípio republicano: em vez de o povo legislar por meio de seus representantes, é o Estado que normatiza em nome do povo, sem escutá-lo. É a isso que chamamos de censura velada — aquela que não se impõe por decreto, mas se infiltra por lacunas institucionais, convertendo a exceção em regra e a urgência em hábito.
Como advertia Luigi Ferrajoli, “o constitucionalismo se funda justamente na limitação do poder pela lei”. Quando o poder se declara intérprete exclusivo do bem comum e age sem controle, o risco não é apenas jurídico — é civilizacional. A censura velada não diz o que se pode ou não dizer: ela cria um ambiente em que todos passam a hesitar antes de falar. E nesse hesitar, perde-se não apenas a coragem, mas a clareza.
O silêncio imposto por temor institucional não é menos danoso do que o silêncio imposto pela força. Em ambos os casos, morre o espírito público, e com ele, a própria ideia de liberdade como expressão autêntica da consciência. Como ensinava Martin Buber, “sem diálogo, não há realidade humana” — e não há diálogo onde a fala já nasce sob suspeita.
Um segundo amigo recorda, com razão, que os Estados Unidos punem severamente aqueles que ameaçam a integridade de seus líderes políticos. Sem dúvida, ameaças reais devem ser tratadas como crimes e responsabilizadas com o rigor que a lei prevê. No entanto, o que distingue uma democracia madura de um regime de exceção é o método, não apenas a intenção. A diferença reside entre punir o ilícito por meio do devido processo legal e transformar toda a sociedade em um ambiente de vigilância preventiva, onde o cidadão é tratado como suspeito antes mesmo de agir.
Adotar o argumento de que “todos os países controlam” como justificativa para ampliar mecanismos de censura é abdicar da soberania crítica e da responsabilidade de construir um modelo próprio de liberdade constitucional. A legitimidade de uma norma não decorre da sua imitação internacional, mas de sua fidelidade aos princípios fundantes do regime que a adota. Como dizia Edmund Burke, “um exemplo ruim tirado de outro país é tão perigoso quanto um veneno servido em taça estrangeira”.
O problema não está em agir contra o crime — mas em governar a partir da exceção. Quando se parte do caso extremo para moldar a norma geral, é a própria ordem jurídica que se submete ao medo. E como advertia Giorgio Agamben, o estado de exceção, quando se prolonga, deixa de ser exceção e se converte em forma permanente de governo. O desafio, portanto, não é negar os riscos — mas impedir que eles se tornem a régua pela qual medimos a liberdade.
Esse meamo segundo amigo relata um dado inquietante: no Brasil, ao se candidatar a determinados cargos federais, é comum que alguém “ligue para o seu telefone e conte toda a sua vida” — inclusive fatos esquecidos, apagados ou que jamais foram explicitamente divulgados. Isso revela um fenômeno profundo e perigoso: o Estado brasileiro já opera com mecanismos de vigilância prévia e discricionária, mesmo sem base legal transparente, e muito menos com a anuência do cidadão. Não se trata mais apenas da coleta passiva de dados: trata-se de um tipo de pré-julgamento existencial que precede qualquer ato.
Essa lógica lembra o que Michel Foucault descreveu como o “panoptismo”: a condição de estar sempre potencialmente vigiado, o que acaba por disciplinar os corpos e silenciar os pensamentos, antes mesmo de qualquer sanção ser aplicada. O resultado é a introjeção da censura como hábito. Já não é o medo da punição que paralisa — é a internalização do olhar do poder. Como ensinava Kierkegaard, “a angústia não vem do que se fez, mas do que se teme poder fazer”.
Esse tipo de vigilância informal, prévia, seletiva e não regulada transforma o cidadão em um dossiê ambulante e fragmenta sua dignidade em fichas de avaliação subjetiva. O perigo não é apenas jurídico, mas civilizacional: quando o acesso à função pública passa a depender da adequação ideológica percebida, rompe-se o princípio do mérito, e institui-se silenciosamente o regime da desconfiança institucional. A pergunta não é mais “o que você fez?”, mas “o que você pensa?”. E quando o Estado se sente autorizado a responder essa pergunta sem transparência nem controle, o totalitarismo já não é uma ameaça — é um hábito instalado.
Talvez o mais grave de tudo isso não esteja nas medidas em si, mas no que elas já provocam de antemão: o silêncio crescente de pessoas lúcidas, éticas e críticas, que simplesmente se calam — não por concordância, mas por medo. Medo de retaliações, de investigações arbitrárias, de difamações sistemáticas ou de punições sem processo. O que antes era um direito de manifestação hoje se tornou um campo minado, onde cada palavra pode ser usada como armadilha. A liberdade, assim, se retrai. Não mais por decreto, mas por pavor. E quando os que pensam já não ousam falar, o que resta é o império da aparência.
Como advertia Pascal, “o silêncio dos sábios é uma calamidade”. E quando esse silêncio se torna involuntário, forçado, vigiado, ele deixa de ser prudência para se tornar derrota. A pior censura não é a que cala os insensatos — é a que inibe os que ainda ousam pensar com profundidade e falar com responsabilidade. O silêncio imposto pelo medo não é ausência de ruído: é a presença do trauma.
O que está em jogo não é apenas o conteúdo de uma postagem ou o destino de uma plataforma digital. É a possibilidade de uma sociedade continuar se ouvindo sem medo de si mesma. E quando essa possibilidade desaparece, resta apenas a simulação do consenso — o mais perigoso de todos os autoritarismos.
7. Conclusão: A Liberdade Não é um Privilégio, é um Dever
Proteger as crianças, combater fraudes e responsabilizar criminosos são, sem dúvida, tarefas legítimas e inadiáveis do Estado. Mas nenhuma dessas causas, por mais nobres que se apresentem, autoriza a subversão das garantias fundamentais que sustentam a liberdade como bem comum. A democracia não se define apenas pelos fins que busca alcançar, mas pelos meios com que escolhe caminhar. E entre os meios inegociáveis está o respeito às liberdades individuais, à presunção de licitude, ao contraditório e à legalidade estrita.
Como ensinava Norberto Bobbio, “a liberdade é a primeira vítima quando os direitos são hierarquizados por conveniência”. Sempre que se justifica a erosão de um direito fundamental em nome de um bem maior, está-se abrindo uma exceção cujo alcance ninguém pode prever. E, como a história já ensinou aos que ainda ousam aprender, não há ameaça mais real à justiça do que a supressão gradual e racionalizada da liberdade — em nome da própria justiça.
A regulação das redes sociais, se desejarmos que seja legítima e duradoura, deve nascer do leito natural da democracia: o debate público, o processo legislativo e a escuta ativa da sociedade civil. Nenhuma estrutura de poder, por mais ilustrada que se declare, pode substituir a pluralidade do Parlamento, a prudência das instituições e a deliberação dos cidadãos. É nessa tessitura que a liberdade se fortalece — não na imposição vertical de normas urgentes, mas na construção horizontal de consensos duráveis.
Como ensinou John Stuart Mill, “toda restrição à liberdade de expressão deve ser justificada não pela segurança do governante, mas pela maturidade do governado”. O verdadeiro poder democrático não teme a crítica — ele a acolhe como sinal de vitalidade. E o verdadeiro Estado de Direito não regula com base no medo do que se pode dizer, mas com base na confiança de que uma sociedade livre é capaz de lidar com a divergência sem recorrer à mordaça.
Censura prévia, controle estatal de opiniões e remoções arbitrárias não são soluções. São sintomas de um sistema que teme o povo e prefere silenciá-lo a escutá-lo. Um regime que não tolera o dissenso está, no fundo, em guerra com a consciência. E como advertia La Boétie, “o tirano nada pode sem os que consentem”. Cabe a nós, portanto, como cidadãos e pensadores, recusar esse consentimento com lucidez e coragem.
A liberdade não é uma concessão do Estado — é uma responsabilidade da consciência. Ela não se negocia. Ela se exerce. E se defende.
8. Epílogo: O Silêncio e a Última Palavra
Há momentos na história em que o silêncio é apenas cansaço — mas há outros em que ele é o último reduto da verdade. Hoje, muitos se calam não por indiferença, mas por medo. O medo de falar o óbvio. O medo de nomear o real. O medo de ser confundido com aquilo que se ousa denunciar.
Mas a liberdade não nasce do medo. Ela nasce do logos — da coragem de dizer com clareza o que precisa ser dito, ainda que contra a maré. Porque quando os que pensam desistem de falar, os que manipulam assumem o discurso. E quando os que amam a verdade se escondem, os que a distorcem tomam o púlpito.
O que se exige de nós, agora, não é heroísmo teatral, mas fidelidade interior. Um compromisso sereno e firme com aquilo que torna a vida digna de ser vivida: a possibilidade de falar com sentido, de ouvir com respeito e de construir juntos uma realidade que não seja imposta, mas compartilhada.
Como ensinava Heráclito, “o logos é comum a todos”. Mas ele só permanece vivo onde há quem o sustente com palavras e com gestos. A liberdade, afinal, começa não quando falamos — mas quando escolhemos não trair o que, dentro de nós, já sabemos ser verdadeiro.
Porque quando o Logos se cala, o poder não perde tempo: molda o mundo à imagem do silêncio.
*O autor é advogado, procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
NR - Os textos assinados expressam a opinião dos seus autores. Neste caso, há completa sintonia com a linha editorial de O Poder.

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