
As lágrimas que fizeram o oceano - A dor que não evapora, maravilha de texto por Zé da Flauta*
31/05/2025 -
Dizem que, antes do tempo se contar em dias e noites, a Terra era um vasto campo seco e silencioso. Quando o primeiro homem foi injustiçado, um camponês expulso de sua terra por um rei ganancioso, ele chorou. Suas lágrimas caíram no solo ressequido e, ao contrário do que se espera de uma gota d’água, não evaporaram. Penetraram fundo, como se procurassem um ventre para repousar. Mas não estavam sozinhas. Vieram outras. De mulheres caladas à força, de crianças vendidas como coisa, de poetas enforcados por pensarem demais. O mundo, aos poucos, começou a umedecer de dor.
As lágrimas escorreram pelas montanhas, atravessaram desertos, dissolveram muralhas de impérios e ajuntaram-se nos vales, transformando o chão em lama e depois em mar. O sal que hoje arde nos olhos dos mergulhadores é o mesmo que ardeu no rosto de um escravo açoitado, de um amante abandonado, de um sábio silenciado. O oceano não se formou por erosão ou placas tectônicas, mas pela persistência da injustiça, e pelo pranto incontido que ela provoca. Por isso o mar não tem dono, não se doma, não se explica. É um relicário vivo da dor coletiva.
Conta-se que, de vez em quando, o mar se revolta sem motivo aparente. Arrasta cidades, engole barcos, ruge com fúria. É quando alguma injustiça antiga, esquecida pelos homens, resolve emergir. Ninguém entende, mas o oceano se lembra. Ele guarda em suas entranhas os gritos não ouvidos, os protestos afogados, os últimos suspiros de quem implorou por misericórdia. Suas ondas não são apenas água: são vozes em movimento, buscando justiça através do tempo.
E há quem diga, os mais velhos, os mais sensíveis, que se você se deitar na areia em silêncio, numa noite sem lua, conseguirá ouvir. Não o barulho das ondas, mas as palavras engolidas por séculos: “não era justo”, “me escutem”, “não fiz nada de errado”. E então, ao perceber isso, você chora. E sua lágrima escorre até o mar. Sal encontra sal. E o oceano cresce mais um pouco.
*Zé da Flauta é músico, compositor e escritor.
