
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito –12 - Cultura Enquanto o mais Profundo do Cultural
17/06/2025 -
Por André Ferreira
A conjunção das noções de cultura enquanto civilização e moralização da natureza humana e liberdade enquanto independência política e autonomia subjetiva pode ser encarada como um patrimônio de uma suposta identidade ocidental. A ideia de que o avanço cultural corresponde ao avanço da liberdade e que tal progresso conjunto tem por protagonista a banda ocidental do planeta é um dos melhores vetores da invenção do que se entende por ocidente.
Inegavelmente, as narrativas enunciadas pelo pensador alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel muito contribuíram para o que parece uma indissociável união entre cultura e liberdade e que o espaço/tempo originário desta unidade se localiza nas experiências vividas entre a península grega e a ibérica, com atenção especial ao mundo germânico.
O texto hegeliano que apresenta a narração do surgimento de nossa suposta identidade ocidental e sua dupla base é a Fenomenologia do Espírito. Hegel conta a história da formação do que ele acreditava ser a cultura ocidental ao modo dos romances de formação (Bildungroman) que caracterizaram o cenário da literatura alemã na passagem dos séculos XVIII e XIX e que tiveram no Fausto e no Jovem Werther de Goethe duas das mais notórias obras.
O filósofo
No capítulo O Reino da Bildung (HEGEL 1992 [b], 9), o filósofo discorre mais especificamente sobre o movimento da realidade histórica que sinaliza o surgimento da formação cultural fundada na liberdade, processo que se iniciaria com a passagem da civilização clássica para a sociedade cristã, que corresponderia ao esgotamento da escravidão e sua substituição pela servidão, que se inicia no séc. III d.C. e que coincide com a expansão do cristianismo.
Segundo o pensador, embora tenham superado o despotismo dos orientais, os clássicos ainda não tinham composto a “consciência-de-si” plenamente livre; Pois, salienta (HEGEL, 1999, 24) que, para os gregos e romanos, somente alguns homens eram livres, e suas vidas e liberdades estavam diretamente ligadas à escravidão.
Assim, o início da formação da cultura ocidental moderna, eurocêntrica, seria marcado tanto pelas primeiras experiências de universalização do Direito constituída pelo ordenamento jurídico do Império Romano quanto pela religiosidade transnacional do cristianismo (HYPPOLITE, 1974, 332-333).
Prosseguindo nessa experiência, teríamos os anos finais do Império Romano como o ambiente para o surgimento de tensões religiosas que se estenderiam pelo mundo bizantino e por toda a Idade Média, Era na qual o espírito de nossa cultura se encontraria desmembrado entre o Reino da Bildung, terreno, e o Reino da Essência, o “mundo da crença” (Hegel, 1992 [b], 9): a dicotomia entre o mundo da realidade sensível contraposto ao mundo da perfeição e plenitude universais, a idealidade moral.
Dicotomia que, segundo Hegel, seria a característica que transcorre na formação da cultura ocidental. A tensão entre esses dois reinos, que teria Agostinho como uma de suas primeiras expressões, se estenderia até o Iluminismo.
Pois, este, ao lançar a meta da vida cultural para o plano de uma suposta determinação pela razão, preservaria a dicotomia característica da cultura ocidental, ao manter o plano da sensibilidade enquanto o oposto ao racional, oposição que não deixa de ser um dos elementos de nossa suposta identidade ocidental.
Neste sentido, Hegel sugere que, em seu reinado, a Bildung estabelece como seu fundamento a consciência da liberdade, que, tendo como marco inicial a prática do cristianismo, segue desenvolvendo a consciência de que, enquanto ser humano, o homem é livre. Isto é, não está condenado à irracionalidade dos desejos e paixões.
Na sequência de sua narrativa, o filósofo aponta que, posterior ao Reino da Bildung, agora, no tempo pós-revolucionário francês, época dos Românticos, surge uma nova forma da cultura e, consequentemente, da moral, que representa o nível mais evoluído do espírito subjetivo. Esta nova realidade da cultura sintetiza sensibilidade, razão e liberdade, superando a moralidade meramente subjetiva e experimentando a vida ética e a moralidade objetiva.
Por conseguinte, a realidade contemporânea vivenciaria a plena conjunção de cultura e liberdade; A estrutura da vida em sociedade, notadamente, a integração da família, da sociedade civil e do Estado, que tem por fundação a Bildung moderna, é a efetividade de uma cultura humanista e liberal que corresponde ao mais avançado estágio da experiência histórica do humano.
Por conseguinte, Hegel é um dos autores da ideia tradicional, segundo a qual a cultura está relacionada à moral. Neste sentido, é sob este contexto conceitual que o autor da Fenomenologia se dá ao trabalho de produzir uma filosofia da arte, atrelada a uma história da arte: ambas são possíveis porque a arte, enquanto emanação da cultura, segue um desenvolvimento positivo, cujo parâmetro é o próprio progresso moral da humanidade.
Hegel é um dos autores a lançar a noção de que, na contemporaneidade moderna, o desenvolvimento da cultura é tanto o progresso da nossa dimensão racional quanto o desenvolvimento de nossa sensibilidade.
O ideário hegeliano
O ideário hegeliano lança o conceito segundo o qual o desenvolvimento histórico da formação cultural, da Bildung, é o avanço da racionalidade em nossa sensibilidade: os bens elevados da cultura, na contemporaneidade, não se opõem à nossa natureza sensível, mas as forma em natureza humana. Tendo por cerne a moral, isto é, a determinação pela razão, a cultura contemporânea não seria marcada pela oposição às nossas paixões, mas, seria identificada pelo moldar essas paixões ao formato da universalidade, racionalidade e liberdade.
Marx será um dos primeiros pensadores a possibilitar o despir a noção de cultura de sua suposta natureza moral.
O autor d’O Capital muda completamente o foco da discussão sobre cultura e liberdade. Segundo Marx, Hegel inverte a realidade por pensamento, a realidade material, que é quem funda o pensamento, é tida como seu fruto. Sobre isso, Marx (1972, 43) afirma que em Hegel: “A humanidade da natureza e a natureza produzida pela história, dos produtos dos homens, aparecem no fato de que eles são produtos do Espírito abstrato e, portanto, nessa mesma medida, momentos espirituais, seres de pensamento”.
Por conseguinte, a cultura e todas as suas obras não são, como Hegel apontava, derivadas de um cerne imaterial da qual se engendra toda a vivência no mundo real. Pelo contrário, é a vivência no mundo real que dá a forma e o sentido das representações culturais de uma sociedade.
Para o pensador socialista, abandonando a noção hegeliana de espírito, temos a proposição da noção de ideologia que seria a representação dos interesses da classe dominante no campo das idéias: “As idéias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante” (Marx e Engels, 1987 [B], 72).
Tendo em mente que “os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com essa sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar” (Marx & Engels, 1987 [B], 37) e que “o representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem como emanação direta de seu comportamento material” (Marx & Engels, 1987 [B], 36), temos, então, que a cultura, e nela os significados da liberdade, são uma representação decorrente da vivência em meio à realidade material e econômica própria da modernidade . Pois, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx & Engels, 1987 [B], 37).
Portanto, decorrente do avanço das forças produtivas e, consequentemente, da luta de classes, a infraestrutura econômica desenvolvida na modernidade constituirá nova objetivação e subjetividade, novas formas da consciência, de ordenamento político e de manifestações da cultura.
Assim sendo, como as relações materiais dominantes, próprias do modo de produção capitalista na modernidade, necessariamente, abrem espaço para intercâmbios mais autônomos entre os produtores, e até mesmo entre as classes (se comparadas com a realidade servil medieval ou a escravista antiga), essa independência e autonomia necessárias à própria realidade da produção fazem com que a discussão sobre autonomia e independência seja erguida à condição de especulação filosófica, sob o tema “liberdade”.
Nesse sentido, a sistematização conceitual da liberdade empreendida pelos pensadores do século XVIII, ou seja, toda discussão iluminista e romântico-idealista, é, aos olhos de Marx, a expressão, no campo das idéias, da prática real que as relações de produção capitalista ensejam.
Assim, a ideia de uma cultura humanista e liberal que corresponderia ao progresso moral do espírito humano seria, então, a representação decorrente da necessidade material e econômica da independência de produção e comércio inerentes ao desenvolvimento do capitalismo.
O filósofo socialista
Atestando essa ótica, o filósofo socialista afirma, no “Manifesto” junto com Engels, que “as ideias de liberdade religiosa e de liberdade de consciência foram apenas a expressão do império da livre concorrência no domínio do conhecimento” (Marx e Engels, 1987 [A], 124).
O que para Hegel é o paradigma da concretude do real, para Marx não passa de uma figura meramente especulativa e que vai determinar outros equívocos cometidos pela filosofia hegeliana.
É consenso entre os comentadores que a realidade material, para Hegel, é a alienação das determinações subjetivas do Espírito, tal realidade é a exteriorização das determinações espirituais, que, ao se efetivarem, deixam de pertencer ao campo “espiritual subjetivo”, o pensamento abstrato, e tornam-se realidade material estranha àquele Espírito, daí serem o Espírito alienado de si.
Os objetos da realidade material são a exteriorização do Espírito Subjetivo (Hegel, 1995, § 483); nessa exteriorização, alheiam-se dele, e, nessa alienação, nesse estranhamento, tornam-se o outro oposto ao “espiritual subjetivo”.
É a oposição entre os momentos subjetivos e objetivos do Espírito quem move o concreto real em Hegel. Ou seja, a alienação do “espiritual objetivo” em relação ao “espiritual subjetivo” força o estranhamento que faz com que o Espírito Subjetivo se mova objetivando outra realidade concreta que será o substrato dinâmico do Espírito Objetivo, desencadeando processos de objetivação-alienação-subjetivação, cuja infinitude é no próprio Espírito Absoluto.
Sendo a alienação em Hegel, segundo Marx, um momento do próprio Espírito, esvaziada fica ela de qualquer caráter negativo; assim sendo, toda exteriorização do Espírito, toda alienação, é necessária para o próprio progresso do Espírito: as figuras do poder estatal, da sensibilidade e da riqueza, ao longo da história humana, são sempre o registro do progresso positivo do Espírito. São, segundo Marx, percebidas por Hegel apenas em seus aspectos positivos. Nesse sentido, o Estado liberal moderno seria a efetivação do avanço do Espírito, seria a efetivação do progresso histórico, que, para Hegel, como vimos, é o próprio progresso da liberdade.
A ótica de Marx
Sob a ótica de Marx, o olhar positivo do pensamento hegeliano sobre a Bildung moderna, a nossa cultura humanista e liberal, dissimularia a realidade: a configuração do Estado liberal moderno e de todo arcabouço da cultura contemporânea, das práticas religiosas à filosofia, são a expressão dos interesses da classe dominante como sendo o interesse do todo da sociedade, como uma realização da própria razão e não da parcela mais rica da sociedade.
Contudo, mesmo esvaziando a aura metafísica sobre a cultura e sua fundação na liberdade, Marx não deixa de reconhecer que na cultura contemporânea, da religião à filosofia, a liberdade é tema e condição.
Contudo, o pensador alemão, ao compreender a ideologia como que uma “substância” que se espraia una e coesa em meio à vida em sociedade, repete o mesmo modo de pensar que também encontramos em Hegel, no que se refere à composição das identidades dos sujeitos e de suas práticas culturais: tais identidades e práticas estão fundadas numa “substância” uniforme; em Hegel, o Espírito, em Marx, a ideologia dominante.
Althusser sinaliza que, em termos do fundamento dos modos de estar na sociedade, não haveria apenas uma única “substância” em meio a qual os sujeitos teriam suas identidades instituídas e suas práticas culturais estruturadas. Sobre o conceito de Ideologia no Marx da Ideologia Alemã, o pensador argelino, fazendo um paralelo com o que se teorizava sobre os sonhos antes de Freud, aponta que, no texto de Marx, “a ideologia é pura ilusão, puro sonho, isto é, nada” (ALTHUSSER, 1999, 196).
Pois, assim como se pensava os sonhos, o imaginário resultante de resíduos diurnos, apresentados num arranjo desordenado, uma composição vazia e nula, tendo a realidade como algo que lhe é puramente exterior, a concepção de ideologia apresentada pelo autor d’O Capital, segundo Althusser, seria também uma montagem imaginária composta pelos elementos tirados da realidade, não tendo uma história própria, posto que seria o reflexo pálido e invertido da história real. Então, assim como se pensava nos sonhos, a ideologia também não seria nada, seria puro vazio (sobre Reprodução 197).
O argelino afirma que defende uma noção de ideologia distinta da marxista, principalmente no que esta tem de positivista e historicista (sobre Reprodução 197). Não sendo um mero falseamento do real, a ideologia tem história e vida própria enquanto representação. Por ser representação, está viva em uma prática inerente ao mundo real.
Althusser retoma a expressão de Marx segundo a qual “a ideologia não tem história” (ALTHUSSER, 1983, 75; ALTHUSSER, 1999, 197), todavia, diferente de Marx, aqui significa que ela não segue um movimento atrelado à história de um processo exterior a ela própria, porém, “as ideologias têm uma história própria” (ALTHUSSER, 1999,197).
Para este pensador, a Ideologia é o substrato que atravessa os sujeitos em suas práticas, estruturando seus modos de representação, assim como Freud propõe a função do inconsciente em relação ao universo consciente dos sujeitos. Deste modo, não cabe ao indivíduo a capacidade de ser o elaborador das representações (ALTHUSSER, 1983), donde deriva que a longevidade de uma ideologia não depende do tempo de vida dos indivíduos que a praticam: a ideologia tem uma temporalidade própria (ALTHUSSER, 1999, 277). O filósofo argelino defende que é sob uma ideologia que toda prática toma vida (ALTHUSSER, 1999, 209).
Portanto, não são os sujeitos que, ao longo de suas experiências no espaço-tempo social, produzem as ideologias que lhes transcorrem; opostamente, são as ideologias que, transcorrendo os sujeitos, ritmam e denotam sua maneira de viver em sociedade.
Consequentemente, podemos inferir que não seriam os sujeitos, como que portadores de uma Res Pensante, como diria Descartes, que, autônoma e conscientemente, constituiriam as bases para modos e práticas que caracterizariam uma cultura. Contudo, seria a cultura que constituiria os modos subjetivos do sujeito, inclusive a crença na subjetividade consciente-de-si e autônoma.
Segundo Althusser, “uma ideologia existe sempre em um aparelho e em sua prática ou práticas” (ALTHUSSER, 1999, 206). Donde decorre que não se pensa em uma única ideologia, ou na ideologia enquanto uma substância que constituí a unidade das identidades.
Mas, se reflete em termos da possibilidade de múltiplas ideologias a circular na sociedade, por conseguinte, a fundar diversas identidades e modos de representação. Daí, nesta perspectiva não se poderia mais tratar uma sociedade em termos de cultura, mas, de culturas.
A noção que recebemos escorados em Hegel e Marx, e que perpassa diversas compreensões de cultura ao longo da modernidade contemporânea, é que a cultura tem uma história que lhe é exterior.
Consequentemente, mudando esse exterior, mudamos a cultura. Daí, acreditar que o progresso moral (Hegel) ou o desenvolvimento das forças produtivas (Marx), isto é, a mudança nos fatores subjetivos ou materiais da experiência dos sujeitos, também transformaria a cultura, significando que as ideias, os sentimentos, os modos de racionalização ou representação seriam expressão direta da cadência do avanço moral ou da dinâmica inerente aos modos de produção e distribuição dos bens.
Todavia, a recorrência do racismo, sexismo, xenofobia, autoritarismo e outras ideias, sentimentos ou modos de racionalização e representação que persistem na sociedade contemporânea nos fazem desconfiar desse atrelamento entre todos os âmbitos do que se pode entender por cultura com as transformações no plano material e nos faz abandonar qualquer credo no progresso moral civilizatório.
Neste sentido, Althusser é um dos que abre a possibilidade para se pensar a cultura não só em termos de pluralidade de modos, mas também da independência desses modos em relação às possíveis transformações produtivas, tecnológicas e de outros campos da vida em sociedade. Neste sentido, a cultura é uma estrutura muito mais profunda do que aquela que se manifesta nos hábitos e sentidos representados nas vivências sociais mais aparentes e mais afetadas pela história do movimento das transformações produtivas e tecnológicas, por exemplo.
Em outras palavras, a cultura é uma estrutura que se manifesta num nível mais fundo que a possível cultura de tolerância e democracia advinda da necessidade econômica de incorporação de segmentos étnicos minoritários no horizonte do mercado consumidor ou da inserção da população feminina no contingente da força de trabalho; um arcabouço mais encovado que o sentimento de pertencimento acionado por se escutar o America the Beautiful, a Marsellesa ou o Vassourinhas.
E, abissalmente mais profunda do que o despertar sentindo fome de cuscuz, ovos-com-bacon ou croissant. Neste sentido, quando a prática social da tolerância e da democracia decorrentes da inclusão de minorias ou partes subalternizadas de uma sociedade à economia de mercado e consumo se faz presente nos currículos escolares, nas pautas da imprensa, nas demandas de governo, nas propagandas eleitorais e na legislação, temos que ter em mente que o engendramento dos hábitos e modos de vivência correspondentes a estas novas realidades sociais podem não estar atingindo os estratos mais afundados da cultura.
Assim, esses estratos mais profundos da cultura seriam independentes das ações intencionais sociais e políticas para a sua suposta transformação. Neste sentido, a escola, a bela arte, as práticas democráticas não são plenamente eficazes para impactar nos modos profundos da vida em sociedade.
As reflexões derivadas de Althusser sugerem diversos modos culturais cuja história, ou seja, cuja dinâmica no tempo, tem relativa independência à dinâmica de outros campos e realidades da vida em sociedade. E que tais modos culturais, assim como o preconceito étnico e o machismo, podem ser sucessivamente reinventados na superfície de nossos hábitos sociais. Deste modo, não apenas os gostos musicais e culinários de uma coletividade teriam sua história própria, mas também, os padrões morais.
O machismo, o autoritarismo e a insensibilidade social
Assim, o machismo, o autoritarismo, a insensibilidade social teriam respectivamente suas próprias histórias, independentes da história dos progressos na escolarização, na distribuição de renda e do ordenamento jurídico. Por conseguinte, esvazia-se o suposto otimismo advindo da crença segundo a qual a educação e o código legal mais progressista poderiam ser ferramentas para o projeto apontado por Hegel: a conversão da natureza sensível bárbara numa sensibilidade suposta mais humana.
A pergunta que fica é: enquanto experiência social, estamos condenados ao faz-de-conta das transformações meramente superficiais da vida cultural? Enquanto agentes políticos, estamos impossibilitados de pensar e propor processos e ações de transformação nos modos de formação subjetiva? Em suma, há alguma possibilidade de se pensar processos e ações que impactem na cultura seguindo um determinado projeto de sociedade?
O estruturalismo de Althusser não aponta caminhos claros que respondam às questões acima. Althusser propõe um paralelo entre a teoria de Marx com a teoria da psicanálise de Freud, acredita no status científico de ambas e numa possibilidade da teoria marxista apontar caminhos para a superação da dominação perpassada pela estrutura ideológica, igualmente como a psicanálise poderia apontar caminhos de superação da problemática advinda do inconsciente.
Contudo, além de não ter deixado uma especulação mais elaborada sobre essas possibilidades, o próprio modo de compreensão da ideologia como estrutura leva a uma apreensão da reprodução enquanto uma condenação, impossibilitando a proposição de um lastro teórico que possibilitasse a formulação de projetos. Pois, sugere uma impossibilidade da ação e projeto intencional no sentido do estabelecimento de outros hábitos e modo de vida em sociedade, por exemplo, a impossibilidade de um processo educativo e formativo contra o racismo e o machismo.
Em contrapartida, se se reformular o que Althusser entende por ideologia não como uma estrutura inerte, mas enquanto linguagem podemos ter uma chave conceitual que aponte para uma possível superação da condenação à reprodução que o pensamento de Althusser nos relega. Neste sentido, mesmo que se entenda a cultura enquanto o mais profundo do cultural, não se estaria negando a possibilidade da formulação de projetos e, consequentemente, de intervenção na vida social, resgatando assim a importância da educação e dos processos de formação que impactem nas matrizes estruturais da cultura.
Não sendo tal reformulação uma volta aos paradigmas da modernidade, a res pensante cartesiana, a teleologia do progresso da moral e da liberdade hegeliana, a unidade da identidade de classe marxista, a ideia de cultura como uma linguagem profunda a aproximaria mais das noções lacanianas de estrutura que da freudiana.
Entendida como grupos de linguagens, as culturas que atravessam as sociedades podem ser pensadas em relação a estratégias que se proponham a impactar seus modos de manifestação e estruturação, não sendo estruturas completamente isentas de interferência projetiva. Isso sem voltar aos credos no processo civilizatório moral e às promessas da modernidade.
Essa perspectiva também possibilita outros olhares sobre a produção cultural dos povos e sociedades ao tirar daquilo que se entendia por alta cultura a falsa aura de elevação moral, para isso, vale lembrar que na entrada de Auschivitz os prisioneiros eram recebidos por uma orquestra de câmara interpretando as mais belas peças da música clássica alemã, e que o feminicídio no Brasil campeia entre a população com formação universitária e de classe média.
Assim, poderemos voltar nossos olhares e intenções educativas e formativas para novos ângulos e prismas no que concerne à função de subjetivação da cultura. Deste modo, abandonando a ideia de uma filosofia da arte ou uma história da arte, as análises sobre os gostos não cairiam na pretensão de classificar as expressões estéticas dos povos e sociedades ao longo da história, tendo por referência cânones eurocêntricos.
Conceber as culturas enquanto grupos de linguagens serve inclusive para que não se perca o tema da liberdade. Não mais enquanto a metafísica da autonomia do indivíduo, tão cara ao pensamento liberal e sua versão atual, o neoliberalismo. Mas, em termos de liberdade enquanto abertura de possibilidades e de projeção de vivências culturais contra-hegemônicas que desafiem a reprodução dos modos tradicionais da cultura. Neste sentido, a liberdade pode ser pensada como um significante vazio cujos significados circulam e se disputam na vivência social.
Neste sentido, a cultura enquanto o mais profundo do cultural estará sempre nos horizontes de nossa inquietação sobre o que realmente somos em termos de sociedade e sobre o que realmente seguimos em termos de experiência histórica.
REFERÊNCIAS
1. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
2. ______. Sobre reprodução. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1999.
3. ___. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses, Petrópolis: Vozes, Volume 1, 1992 [a].
4. __. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses, Petrópolis: Vozes, Volume 2, 1992 [b].
5. ___. Enciclopédia das Ciências Filosóficas III – A Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Meneses, São Paulo, Loyola. 1995.
6. __. Filosofia da História. 2a ed. Brasília: UNB. 1999.
7. HYPPOLITE, Jean. Génesis y Estructura de La Fenomonología del Espíritu de Hegel. Barcelona: Península, 1974.
8. MARX, Karl. 1972. Terceiro Manuscrito Econômico-Filosófico. In: Karl Marx. “Os Pensadores”, São Paulo, Abril.
9. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. 1987 [A]. Manifesto Comunista. In: Cartas Filosóficas e Manifesto Comunista. São Paulo, Editora Moraes.
10. -. 1987 [B]. A Ideologia Alemã. Trad. J. C. Bruni & M. A. Nogueira, 6ª. Ed., São Paulo, HUCITEC
André Ferreira é da UFPE.
