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Ensaio - O Tiranete e o Espelho: Uma Carta Estoica ao Poder sem Virtude

02/07/2025 -

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Ensaio em homenagem a Carlos Henrique Lima.

Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

Epígrafe:

“Ao homem que se conhece, ninguém comanda por dentro.”
(Fragmento estoico, reconstruído em mim)

1. Toda tirania começa pequena

Foi numa troca de mensagens simples, entre a tarde e o início da noite, que a fagulha surgiu.

Carlos Henrique, com a generosidade de quem compartilha o que toca, me enviou um artigo de Leandro Karnal sobre a tirania do “pequeno poder” — esse autoritarismo sutil, miúdo, mas corrosivo, que habita os bastidores da vida cotidiana.

Falava-se ali do agente de aeroporto que humilha sem necessidade, do síndico que age como se governasse um império, do balconista que mede o cliente pelo sapato, do fiscal que saboreia a demora, do funcionário de cartório que prolonga o simples em nome do controle.

Lemos o texto de Karnal e trocamos impressões.

Carlos elogiou a clareza e a força do texto.
Eu agradeci o envio, e ao final lhe prometi: “Vou transformar em ensaio — em sua homenagem.”

Porque quando uma leitura nos move, ela nos convida a mais.

E porque todo bom pensamento nasce de um encontro verdadeiro — não com o texto apenas, mas com quem o partilha.

Mas naquele instante, percebi que algo fundamental estava ausente no artigo de Karnal — algo que talvez escapasse por convicção sua ou por estilo: a conduta interior necessária para enfrentar esse tipo de abuso com dignidade e lucidez.






Foi aí que nasceu minha primeira resposta: a filosofia estoica como chave ética e espiritual para lidar com o tiranete sem ser arrastado por ele.

O estoicismo, mais que uma escola, é uma armadura moral — silenciosa, discreta, mas invulnerável às investidas do próprio ego e do ego alheio.

Epicteto, escravo liberto e mestre da liberdade interior, ensinava: “As pessoas não nos perturbam; o que nos perturba são os nossos julgamentos sobre elas.”

Essa máxima — tão simples quanto profunda — nos dá a chave para enfrentar os pequenos déspotas que se multiplicam em nome de cargos vazios.

Com base nessa ideia, escrevi a Carlos que diante do balconista ríspido, do guarda mal-humorado ou do síndico autoritário, o estoico distingue: o gesto do outro não me define — e o modo como reajo é meu verdadeiro território de soberania.

Mas não me contentei com a teoria. Enviei-lhe depois uma segunda resposta: mais prática, mais concreta, mais vivida.

Ali, detalhei como o estoicismo não propõe fuga nem submissão, mas ação firme sem raiva, compostura sem covardia, lucidez sem exibicionismo.

Contra o abuso legal, recorro. Contra a grosseria, silencio. Contra a humilhação, recordo-me de quem sou — e não devolvo na mesma moeda aquilo que não me serve mais carregar.

É aqui que o estoicismo se alia à maturidade emocional e à coragem moral.

Sêneca dizia que “o verdadeiro sábio é invulnerável às injúrias, não porque não as percebe, mas porque não as permite entrar em seu espírito.”

Conta-se que um sábio oriental disse certa vez:
“Se alguém lhe oferece um presente e você não o aceita, com quem fica o presente?”
Agora considere a ofensa como esse presente.

Se você não a acolhe, ela permanece com quem a proferiu.

O tiranete só nos atinge quando lhe entregamos o poder de nos ferir — e essa entrega é sempre, ainda que inconsciente, um gesto nosso.






Marco Aurélio, imperador e filósofo, nos recordava que o domínio de si é a mais nobre forma de autoridade.

Lao-Tsé iria mais longe: “Aquele que vence os outros é forte; aquele que vence a si mesmo é poderoso.”


Este ensaio gira em torno de um eixo invisível: o ponto exato onde a dignidade resiste sem gritar, e a liberdade floresce em silêncio — mesmo diante dos pequenos impérios do cotidiano.

A partir dele podemo indagar: Como não sucumbir à tirania dos pequenos poderes — sem se tornar cúmplice, sem se tornar refém, e, sobretudo, sem se tornar tirano também?

Minha resposta começa aqui: Com o reconhecimento de que a tirania nem sempre usa coroa — às vezes ela veste colete de funcionário, uniforme de escola, ou crachá de repartição.

E mais: que ela também já habitou em mim.

Se hoje escrevo com alguma serenidade, é porque já experimentei o desconforto de ter cedido ao próprio desejo de impor.

E sei o quanto precisei desmontar em silêncio meu ego antigo para poder me tornar alguém um pouco melhor.

Por isso este ensaio é, sim, uma homenagem a Carlos Henrique — mas é também uma oferenda a todos os que já foram feridos pela autoridade sem alma, e um lembrete para os que, um dia, inadvertidamente, também feriram.

2. O poder que revela o homem

Karnal acerta no diagnóstico: o poder não corrompe — ele revela.

Como diz o repetido e consagrado aforismo popular: “Dê poder a um homem e saberás quem ele é.”

No entanto, talvez seja mais preciso dizer: Dê poder a um homem, e ele revelará aquilo que passou a vida tentando ocultar — até de si mesmo.

E, ao contrário do que muitos pensam, essa revelação se dá menos nas grandes decisões e mais nos pequenos gestos.

Não é no decreto, mas no olhar atravessado.

Não é no tribunal, mas na fila do protocolo.

A sabedoria bíblica já advertia: “Aquele que é fiel no pouco, também o será no muito.”

Mas há um reverso inquietante que precisa ser dito: quem é prepotente no pouco, talvez seja tirano no muito.

Ou pior: talvez use o pouco que possui como válvula de escape para uma vida de ressentimentos não elaborados.

Esse é o drama do “tiranete” — a versão doméstica da tirania, o capataz simbólico das nossas estruturas sociais.






Ele não governa o mundo, mas precisa desesperadamente mandar em alguém.
Mesmo que seja por dez segundos. Mesmo que seja no carimbo.

Mas o tiranete não se limita ao espaço público. Sua forma mais comum — e mais perversa — muitas vezes atua na esfera da vida privada, onde as máscaras caem e o poder simbólico assume expressões sutis, porém destrutivas.

Ele se revela no tom atravessado com o empregado, na rispidez habitual com familiares, na impaciência com os filhos, na altivez gratuita diante de um garçom, de uma recepcionista, de um estranho na fila do mercado.

É ali, nos espaços de intimidade ou anonimato, que o impulso de dominação escapa sem filtro — e se mostra por inteiro.

São cenas cotidianas, quase banais, mas que denunciam uma verdade profunda: o pequeno poder, quando mal resolvido, se converte em instrumento de vingança simbólica contra frustrações acumuladas.

O filósofo chinês Han Feizi dizia: “Os que têm poder e não o dominam, são dominados por ele.”

E é exatamente isso que se vê nos pequenos postos de autoridade — sejam formais ou informais, públicos ou privados: o cargo, o título ou o vínculo que deveria ser expressão de serviço vira compensação emocional.

Não se vislumbra ali o exercício de uma responsabilidade — mas a prática de uma revanche disfarçada. Algo que se assemelha a um teatro íntimo de ressentimentos mal digeridos.

Nietzsche, apesar de seus equívocos morais, percebeu com clareza esse sintoma: “Quem não pode comandar a si mesmo, deseja dominar os outros.”

No tiranete, o que falta é contenção interior.
No fundo, é a carência de si mesmo que o faz buscar domínio sobre os outros.

No plano psicanalítico, trata-se de um narcisismo defensivo — não o orgulho de quem se sente superior, mas a fúria de quem passou tempo demais se sentindo inferior.

A autoridade vira disfarce do medo.
O uniforme vira máscara.
O tom de voz, uma armadura infantil.

Lao-Tsé alertava: “Quando o governante se sente pequeno, ele precisa mostrar força.”

E Platão, em sua denúncia da tirania, ensinava que o governante ideal seria aquele que não desejasse o poder — mas o aceitasse como serviço à justiça.

O oposto exato do síndico prepotente ou do atendente vingativo.

Esses pequenos imperadores do cotidiano não querem justiça — querem reverência.
Não querem respeito — querem controle.
E seu maior pavor é que alguém atravesse seu território sem se curvar.

Mas há um ponto ainda mais profundo:
o poder, mesmo o menor deles, não cria o tirano — apenas lhe dá palco.

Quem oprime com um cargo mínimo já trazia a tirania incubada na alma.

Marco Aurélio, que comandava o maior império da Terra, escrevia para si mesmo, em seus Pensamentos:

“Lembra-te sempre: és apenas um homem entre homens, e não estás aqui para reinar sobre as almas, mas para cuidar das tuas ações.”

Como contrasta essa voz com os que, com um crachá ou um carimbo, se acham deuses do instante!

Portanto, o poder — qualquer poder — é um espelho. Quem nele se contempla com humildade, cresce. Quem nele se contempla com vaidade, adoece.

E talvez esse seja o maior ensinamento deste ensaio: não há poder pequeno demais que não possa corromper — nem alma verdadeiramente grande que não consiga se manter firme diante de qualquer poder.

Não é o tamanho do poder que se exerce ou se suporta que revela o homem — mas a grandeza da consciência com que ele se conduz.

O pequeno poder corrompe com a mesma intensidade que o grande — quando encontra almas despreparadas.

3. O estoicismo como antídoto

Foi ao reler o texto de Karnal, desta vez com olhos mais atentos à ausência do essencial que percebi: havia um elemento ausente, sutil, mas essencial.

Não por omissão — talvez por inclinação — Karnal deixou de abordar a filosofia estoica. E não como escola antiga, mas como prática viva: um antídoto silencioso contra o veneno diário do poder mal exercido.

Longe de ser uma doutrina fria, o estoicismo é uma pedagogia da liberdade interior — a arte mais elevada de caminhar por entre os ruídos do mundo sem ser tragado por eles.

Epicteto, que conheceu o chicote antes do púlpito, nos legou uma das frases mais libertadoras da história:

“O que te fere não é o que acontece, mas o julgamento que você faz do que acontece.”

Essa ideia, tão simples à primeira vista, é uma revolução silenciosa. Ela desloca o centro de gravidade da ofensa para a consciência.

Não é o gesto do tiranete que me escraviza — é a minha permissão emocional que lhe dá domínio.

Um pequeno déspota só se torna gigante se eu me encolho diante dele.

O poder dele não está no cargo — está no impacto que eu permito que ele tenha sobre mim.

Quando um agente de trânsito me aborda com arrogância, quando um atendente me trata com desdém, o que está sendo testado não é apenas a minha paciência.

É a minha capacidade de não ceder o governo da alma a quem não sabe governar nem a própria sombra.

O estoico não se cala por covardia, nem explode por vaidade. Ele discerne. Avalia. Age — se necessário — com firmeza, mas sem perder o eixo.

Marco Aurélio, que tinha o poder de um imperador e o coração de um filósofo, anotava para si mesmo:

“Escolha não se ofender, e você não será ofendido.”

É fácil entender mal essa frase no tempo das suscetibilidades infladas. Ela não significa ser omisso. Significa recusar-se a ser moldado pela grosseria do outro.

Significa que, mesmo sob ataque, a dignidade não precisa ser gritada — ela pode apenas permanecer.

E é isso que torna o estoicismo tão eficaz diante dos tiranetes: ele os desnuda. Mostra que o poder deles termina onde começa a minha consciência desperta.

Lao-Tsé, com sua doçura cortante, diria que “o homem verdadeiramente forte é aquele que governa a si mesmo.”

E Sêneca acrescentaria: “Não há escravidão maior do que ser escravo da própria raiva.”

O estoico não é um indiferente. Ele sente. Mas não é guiado pela emoção. Ele age. Mas não se afoga no impulso. Ele vê a sombra do outro e a sua própria sombra — mas não dialoga com ela no mesmo tom.

Essa é, talvez, a mais alta forma de poder: o que não se impõe sobre os outros, mas se afirma dentro de si.

O tiranete nos testa.

O estoico nos treina.

E o intervalo entre ambos é o lugar onde se mede, todos os dias, o tamanho da nossa liberdade real.

4. Confissões de um ex-tiranete

Há um ponto da estrada em que não basta apontar os erros do mundo. É preciso ter a coragem — e a humildade — de reconhecer os próprios.

Por isso escrevo este trecho não sem o constrangimento de quem reconhece os próprios erros — mas com a gratidão de quem aprende com eles.

Sim, também já fui — e, para me manter honesto e vigilante, devo confessar — ainda sou, em certos momentos, um desses pequenos tiranos que agora denuncio.

Não precisei de um grande cargo para isso.
Bastou um pouco de prestígio. Uma função transitória. Uma sala com porta que se fecha por dentro.

A embriaguez do poder nem sempre se anuncia com fanfarra. Ela chega de mansinho, como elogio, como deferência, como microautoridade. E se encontra com o que temos de mais mal resolvido.

Foi assim comigo. Confundi autoridade com superioridade. Acreditei, ainda que sem perceber, que liderar era impor.

Entendi, equivocadamente, que o tom bastava. Que a última palavra era minha. E quando percebi, já havia ferido pessoas com gestos que, hoje, envergonhariam até o pouco de bondade que há em mim.

No entanto, foi nessa queda — discreta, mas profunda — que começou o aprendizado que agora me sustenta.

Tive que desmontar o que achava que era, para reencontrar quem eu desejava ser.

O estoicismo me ajudou nesse processo não como doutrina, mas como espelho. Ele não me ofereceu desculpas, nem indulgência. Ele me ofereceu disciplina. Silêncio. E sobretudo: responsabilidade.

Entendi, pouco a pouco, que governar a si mesmo é infinitamente mais difícil — e mais nobre — do que mandar sobre os outros.

Que o verdadeiro poder começa quando a necessidade de provar algo desaparece. E que a maturidade se mede não pelo volume da voz, mas pela firmeza com que se recusa o espetáculo da vaidade.

Essa talvez tenha sido a maior lição que recebi dos antigos: não reagir como espelho, mas como escolha.

Não devolver o golpe — mas sustar o ciclo. Não calar por medo — mas falar com dignidade.

Como dizia Confúcio, “o homem superior exige tudo de si; o inferior, dos outros.”

E como ensinava Viktor Frankl, quem tem um porquê dentro de si, não se curva ao como imposto de fora.

Hoje sei que aquele que se impõe pela força ou pelo cargo está sempre na iminência da queda. Mas aquele que sustenta a compostura quando poderia retaliar… esse está em paz.

E a paz, ao contrário do poder, não se mede por quantos obedecem — mas por quantas vezes você se recusou a ser o que o mundo esperava que você fosse.

5. Contra o tirano, compostura; contra o tiranete, compaixão

É evidente que há momentos em que o silêncio se torna conivência. A resistência, quando necessária, não é rebeldia — é integridade.

Não se trata de aceitar calado o abuso do síndico, do chefe, do ministro ou do presidente.

A justiça não exige grito, mas clareza. E a dignidade não precisa de fúria para existir.

Mas é preciso lembrar: até a resistência pode ser serena. Até a denúncia pode ser justa. E até o enfrentamento pode ser feito sem ódio — porque o ódio nos iguala àquilo que dizemos combater.

Há uma compostura moral que o tempo não ensina — mas a consciência exige. Essa compostura é força sem exibição. É firmeza sem arrogância. É resposta sem revide.

Sêneca, que conviveu com o desvario de Nero, dizia que “o verdadeiro sábio é brando com os tolos e duro apenas com a injustiça.”

O tolo precisa de compaixão. A injustiça, de limite. E nós, da vigilância constante sobre a fronteira tênue entre coragem e vaidade.

Contra o tirano de cargo alto, compostura.
Não pela liturgia do poder, mas pela liturgia da consciência.

Responder com sobriedade é retirar do tirano o prazer do espetáculo. É revelar, com o próprio equilíbrio, a desmedida do outro.

Contra o tiranete do cotidiano, compaixão.
Não como condescendência, mas como lucidez.

Pois quem precisa impor autoridade em doses microscópicas, o faz quase sempre por fragilidade, não por maldade.

Como dizia Buda, “o ódio não cessa com o ódio — mas com o não-ódio.” E como ensinava Jesus, é o perdão que nos salva de nos tornarmos aquilo que nos feriu.

Mas o maior desafio é o que permanece mais oculto: vigiar o tirano interior. Aquele que, disfarçado de zelo, pode se tornar arrogância. Aquele que, travestido de justiça, pode mascarar vaidade ou revanche.

O ego, como advertia Pascal, é um imperador disfarçado de consciência.

Por isso, a vigilância sobre si mesmo é superior à denúncia do outro. E quem governa a si mesmo, com retidão e modéstia, desarma até o mais ardiloso dos tiranos.

Em última instância, não se trata apenas de como reagimos ao poder dos outros —
mas de como usamos o nosso.

6. A liberdade está no governo de si

Carlos Henrique, meu amigo, Chegamos ao fim — e, como sempre, é no fim que reencontramos o começo.

Percebo agora, com nitidez, que este ensaio não é apenas sobre tiranetes ou tiranos.

É sobre nós.

Sobre como reagimos.

Sobre como aprendemos.

E, sobretudo, sobre como crescemos a partir das quedas que não quiseram nos destruir — mas nos revelar.

Falo por mim. E por tantos que caminham na mesma travessia. Porque o que hoje se traduz em compostura já foi, um dia, impulso.

O que hoje se sustenta em silêncio já foi, em outro tempo, grito. O que hoje é sobriedade, custou vaidade. O que hoje é discernimento, foi lapidado na dor da consciência.

Aprendi, com tropeços e vigílias, a converter minha vaidade em vigilância. Minha cólera em compostura. Meu orgulho em autoconsciência.

E sei que essa obra não está concluída. Mas é no próprio esforço que reside a dignidade do caminho.

Por isso, quando hoje me deparo com um pequeno tirano, não o desprezo — me recordo. Recordo de mim mesmo.

E escolho, mais uma vez, não voltar a ser o que precisei deixar de ser para me tornar quem estou me esforçando para ser.

Essa, para mim, é a definição mais alta de liberdade. Não aquela que se agita em palavras de ordem, mas a que se afirma em silêncio interior.

Não a que exige ser reconhecida, mas a que se basta. Não a que comanda os outros, mas a que se recusa a ser comandada pelo próprio ego.

Lao-Tsé disse que “aquele que domina os outros é forte, mas aquele que domina a si mesmo é invencível.”

E Viktor Frankl acrescentaria: “entre o estímulo e a resposta, há um espaço. Nesse espaço está o nosso poder de escolher.”

Essa escolha é o templo onde a verdadeira liberdade se ergue. E é por isso que este ensaio, embora nascido de um texto sobre o poder dos outros, termina como um testemunho sobre o poder de si.

A você, Carlos, que inspirou essa travessia com um gesto tão simples quanto generoso — meu irmão de alma e de ideias —, dedico estas palavras com gratidão.

Elas são reflexo da tua escuta, mas também espelho do nosso tempo. E, quem sabe, uma centelha a mais para que, mesmo entre tiranos, permaneçamos livres.

7. Epílogo – O Vermelho Estoico

Nem toda filosofia nasce de um tratado. Às vezes, ela brota numa repartição pública, entre uma máquina quebrada e um constrangimento bem calibrado.

Era fevereiro de 2019. Meu pai havia partido havia pouco — e com meus irmãos, Jacqueline e José Alfredo, fomos a Portugal resolver os trâmites do inventário.

Entre uma visita ao cartório e outra ao cemitério, também precisávamos cuidar de algo mais terreno: renovar nossos passaportes portugueses.

Para wsse fim, era preciso, primeiro, emitir o novo Cartão de Cidadão.

Dirigimo-nos à repartição mais próxima de nossa casa em Angeja, situada em Albergaria-a-Velha.

Lá fomos recebidos por uma funcionária de uns cinquenta e poucos anos — alta, comprida, um tanto desengonçada, mas zelosa ao modo português.

Bastou que meu irmão José Alfredo se aproximasse para ela se transformar: alisou-lhe o colarinho, ajeitou-lhe o cabelo, cuidou da fotografia como quem cuida de um neto favorito. Um misto de protocolo e flerte institucional.

Explicamos que estávamos apenas de passagem pelo país, e que os cartões chegariam por correio em até dez dias. De fato, chegaram. Voltamos então à repartição.

Ao me ver cruzar a porta, talvez tentando demonstrar proatividade — ou exercer sua autoridade cívica recém-ativada — a funcionária disparou, em alto e claro tom lusitano:

— Hoje não tem passaporte!

Sem alterar a respiração, respondi:

— Está bem!

Mas ela não parou:

— E amanhã também não!

— Está bem! Está bem!

E ela, triunfante, cravou a estocada final:

— E depois de amanhã também não!

Ao que retruquei, com a fleuma que me restava:

— Está bem! Está bem! E está bem!

Nesse momento, talvez percebendo que havia ultrapassado a liturgia do bom senso, ela explicou:

— É que a máquina está quebrada... e não sabemos quando volta a funcionar.

Chamei meus irmãos, que assistiam à cena com olhos arregalados e sorrisos contidos, e partimos para Aveiro, onde tiramos nossos passaportes com tranquilidade.
Mas não sem antes ouvir a observação debochada e fraterna de José Alfredo, ainda rindo:

— A cada intervenção da mulher, tu ficavas mais vermelho...

E era verdade.

O rubor não era apenas do sangue que subia — mas do ego que descia.

Ali, diante da funcionária comprida e da máquina avariada, meu tiranete interior se agitava, ofendido por não ter controle nem sobre o tempo, nem sobre a fila, nem sobre o roteiro da burocracia portuguesa.

Mas ao recordar o episódio, não o faço com mágoa — e sim com alívio. Alívio de não ter respondido com grosseria. De não ter exigido, gritado ou invocado títulos.
De ter conseguido, ainda que com esforço, sustentar o silêncio onde antes viria o revide. Sim, o rosto ficou vermelho. Mas a alma permaneceu livre.

E é por isso que termino este ensaio com um sorriso — desses que Machado de Assis deixaria escapar por trás do monóculo.

Porque a verdadeira vitória, meu caro Carlos Henrique, não é passar pela burocracia sem se irritar.

É passar por si mesmo sem se trair — e, ao final, reconhecer-se não pelo que reagiu, mas pelo que escolheu preservar.

8. Pós-escrito — O Tirano e o Bonzinho: Duas Faces da Mesma Sombra

Há ainda uma outra forma de tirania — mais dissimulada, mais sedutora e, por isso mesmo, mais perigosa: o tirano travestido de bonzinho.

Ele não grita — insinua. Não impõe — manipula. Não desafia — contorna, contamina, convence com doçura controladora. Usa a espiritualidade como biombo, o discurso da paz como escudo, a compaixão como moeda de troca para exercer domínio emocional.

Mas é importante compreender: não se trata de um tipo fixo ou de um "outro" exterior que podemos apontar com segurança. Esse personagem — esse arquétipo — não vive apenas nos outros. Ele vive em nós.

Trata-se de um gradiente existencial, que vai do gesto mais sutil ao controle mais sofisticado. Como ensinava Pascal, "a causa da desordem do homem está no seu amor próprio desregrado". Esse amor próprio, quando disfarçado de virtude, ganha expressões insuspeitas.

Esse modo de agir se manifesta quando estamos distraídos, feridos, inseguros ou sedentos por aprovação. Noutras vezes, conseguimos contê-lo — com silêncio, com escuta, com humildade.

Mas, como todo mal que ronda o humano, ele ainda existe — latente, cíclico, reincidente — em alguma dobra da alma. Como dizia Lao-Tsé: “o homem virtuoso pensa em corrigir seus defeitos; o homem vulgar pensa em corrigir os dos outros”.

Nilton Bonder, em A Cabala da Inveja, observa com clareza esse fenômeno: o bonzinho é, frequentemente, a forma socialmente aceitável da inveja.

É aquele que, incapaz de lidar com a grandeza alheia, disfarça sua disputa emocional com gestos de suposta bondade. Não age por amor — age por cálculo. Não busca o bem — busca reconhecimento por parecer bom.

Por isso, paradoxalmente, sua presença asfixia. Sua generosidade cobra. Seu cuidado aprisiona. É o anjo enraivecido — aquele que sorri por fora, mas exige obediência por dentro.

Se o tirano domina pela força, o bonzinho domina pela sedução. Ambos nascem do mesmo lugar: o ego que não suporta ser apenas um entre outros.

Aristóteles ensinava que a virtude está no meio, e esse meio exige medida e vigilância. O bonzinho manipula pelo excesso de suavidade, o tirano, pela falta de freio.

Por isso, a vigilância interior não pode mirar apenas o tirano impulsivo. Deve mirar também o cordeiro treinado para controlar lobos. O gentil que constrange. O espiritualizado que manipula. O pacificador que impõe sua paz como norma.

Reconheço esse traço em mim. Já manifestei no passado esse perfil. E, em certas ocasiões, ainda me vejo seduzido por ele.

Aprendi a desconfiar das minhas palavras mais doces, quando mascaram orgulho. Das emoções mais elevadas, quando ocultam necessidade de aplauso. Da generosidade que exige gratidão. Da virtude que se impacienta quando não é notada.

Meus instrumentos não são infalíveis — mas são fiéis: autoconsciência e autorreflexão. Como dizia Sêneca, “o verdadeiro homem virtuoso é aquele que se examina continuamente”.

O estoicismo me ensinou a não confiar na primeira emoção. A Cabala me ensinou a nomear o impulso disfarçado. A espiritualidade real — aquela que não se serve de mim, mas à qual me coloco a serviço — me ensinou a perguntar:

“O que em mim está falando agora? O que em mim está tentando comandar?”

Tanto o tirano quanto o bonzinho são expressões de um ego que teme desaparecer. Um ataca. O outro seduz. Ambos disputam poder — cada qual à sua maneira.

Mas só há liberdade quando o eu se aquieta. Quando a consciência observa sem se identificar. Quando a ação nasce não de um personagem, mas da verdade nua do instante.

Esse é o ponto de encontro entre o estoicismo, a Cabala e a verdadeira espiritualidade: agir sem disfarce, servir sem vanglória, e calar quando o silêncio for mais sincero do que a virtude encenada.

Porque às vezes — e eu sei disso — o verdadeiro tirano não grita. Ele sorri. E sorri com ternura, enquanto nos acorrenta em nome do amor.

É por isso que, em todas as conversas que tenho sobre espiritualidade, costumo repetir — primeiro a mim mesmo: os valores que admiro, as virtudes que estudo e os defeitos que percebo no mundo só têm sentido se os examino dentro de mim.

De nada adianta analisar o comportamento dos outros, criticar suas sombras ou apontar incoerências, se não trago esse exame para a minha vida silenciosa, concreta e cotidiana.

Quando esse olhar não é para dentro, ele se torna julgamento. E quando é narrado aos outros, vira fofoca. Não é espiritualidade — é vaidade. Não é filosofia — é espetáculo.

O verdadeiro caminho exige que a luz que carrego não sirva para expor o outro, mas para iluminar o chão que eu piso — e, ao fazê-lo, impedir que a sombra do meu ego se projete como virtude sobre os demais, e que essa mesma sombra não me distraia da tarefa mais íntima e constante: pacificar a minha própria alma.

(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

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