
O Arraial que não se rendeu - Trindade de barro, sangue e bravura
02/07/2025 -
Por Zé da Flauta*
No tempo em que os canhões falavam mais alto que as palavras, quando Pernambuco se viu invadido por soldados de olhos claros e ambições sombrias, ergueu-se um reduto de teimosia e bravura chamado Arraial do Bom Jesus. Ali, entre o Capibaribe e o Beberibe, no alto de uma colina estratégica, nossos antepassados decidiram que não entregariam o açúcar nem a alma de mão beijada. Era um tempo em que a pólvora se misturava com a fé, e a resistência era feita com mais coragem do que bala. Se o Recife virou a Holanda tropical, o Arraial virou o coração pulsante da resistência luso-brasileira, batendo no compasso do que viria a ser o nosso amor próprio.
Trincheira
Por quase cinco anos, o Arraial segurou a onda, ou melhor, o exército holandês, com suas armaduras reluzentes e intenções mercantis. Ali se fez o improviso estratégico, o teatro da astúcia, a cozinha do engenho de guerra nordestino, onde negros, índios e brancos se misturaram numa só causa, muito antes de alguém inventar a palavra diversidade. Era barro virando trincheira, era estômago vazio virando oração, era pólvora molhada virando milagre. E mesmo quando o inimigo venceu pela força bruta, o espírito daquele arraial continuou solto no ar como cheiro de café.

Memória
Hoje, o que era sangue é sombra, o que era medo é memória, o que era trincheira virou o Sítio da Trindade, tombado, amado e meio esquecido às vezes, como tudo que já foi heróico neste país de esquecimentos. Mas quem anda por lá e escuta o vento com o ouvido do coração, ainda pode ouvir o rangido da carroça trazendo pólvora, o sussurro dos planos de defesa, o grito abafado dos que resistiram até o fim. Não há placa de bronze que diga com justiça o que aquele chão sustentou, nem edital cultural que abrace a emoção que ali se esconde.
Resistência
O Arraial do Bom Jesus foi mais que uma defesa militar, foi uma lição existencial, ensinando que há lugares que não se defendem apenas com armas, mas com alma, com poesia, com a recusa teimosa de ser submisso. E se hoje alguém pisa desavisado naquele solo sagrado, achando que é só mais um parque com feira de artesanato e trio pé de serra, que se benza, pois pisa sobre a altivez de um povo que, antes de virar estatística, foi resistência. E se um dia lhe perguntarem onde nasceu a coragem de Pernambuco, diga sem medo que foi no alto de uma colina, onde a terra falou mais alto que os invasores.
Até a próxima!
*Zé da Flauta é músico, compositor e escritor.
