imagem noticia

Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito -15 - Na Outra Margem do Ocidente: multiculturalismo e multinaturalismo

08/07/2025 -

imagem noticia
Por Adalgisa Leão



Tentei demasiadamente escrever esse texto sem recorrer à Claude Lévi-Strauss, mas sem sucesso. É que a formulação “Tristes trópicos” me parece tão absurdamente atual para descrever a nossa situação existencial – como uma tonalidade afetiva – que essa imagem não me saía do horizonte e me colapsava.

Sou adepta do deslocamento reflexivo necessário à experiência de pensamento, que parte da utilização de um conceito de conceito cujo emprego não esteja a serviço de classificar cosmologias que nos parecem exóticas (selvagens), mas um conceito de conceito que proporciona contra-analisar antropologias que nos são demasiadamente familiares.


Talvez a formulação “Tristes trópicos” permaneça como potente figura reflexiva, porque atesta a nossa – ainda – incapacidade de lidar com “lapenséesauvage”: não se trata de operar o deslocamento no sentido de reivindicar para os ditos “selvagens” que pensam, uma racionalidade que eles nunca demandaram reconhecimento, mas tomar a ideia lévi-straussiana em sua profundidade projeto uma outra imagem do pensamento, e não um predicativo imagético do selvagem.


Pensamento domesticado

Tendo em vista que é o pensamento domesticado – oriundo de uma antropologia eurocentrada e por oposição ao pensamento selvagem – que opera a distinção entre natureza e cultura, no presente texto quero mimetizar essa distinção através das categorias multiculturalismo e multinaturalismo.


Quando o falso prefixo multi se instala no conceito de cultura, este parece ser um termo mais difundido entre nós. Multiculturalismo seria então (dentre tantas outras acepções, devendo ele mesmo ser tratado no plural que demanda para a sociedade) “o reconhecimento da igual dignidade das expressões culturais dos grupos e das comunidadesque convivem em uma sociedade democrática. A forçadesta proposta é traduzir a questão das diferentes concepções do humano em um problema ético-político de convivência . Significa que o multiculturalismo é um conceito tipicamente ocidental, que surge nos anos 1970 de uma crítica interna ao ocidente.

Mas não se trata de qualquer ocidente: se direciona àquele que outrora abriu caminhos contraditórios de relação com o Outro (o da força e o da consciência europeia), quando confrontados com sociedades radicalmente diferentes. Esses ocidentais não hesitam em impor a sua concepção de sociedade humana. Sabemos da tristeza que se instalou nos trópicos no período da colonização.

Insisto: mas não se trata de qualquer ocidente. Se direciona também àquele que já quer se distanciar da ferida (pós)colonial, mas que reduz – uma vez mais – culturas à “cultura ocidental europeia” e que carrega em seu interior uma imagem ecológica dos grupos culturais, considerados como“espécies” a serem protegidas em virtude de um ambíguo direito à“suposta igualdade” – reitero – jamais demandada pelos agrupamentos que realmente não foram submetidos ao processo de assimilação.


No campo de argumentação pedagógica, do qual sou procedente, a noção de multiculturalismo serviu aos propósitos de uma educação voltada para o combate ao preconceito, valorização das diferenças, respeito e diversidade,mas foi incapaz de questionar o estatuto do humano como topo da escala taxonômica ontológica, ignorando que é esse humano que materializa as atrocidades agora combatidas.

Na outra margem do ocidente, nos “tristes trópicos”, todos os seres são passíveis de cultura, não apenas os ditos “humanos”. O deslocamento reflexivo operado pelo perspectivismo ameríndio preconiza que a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. Se a nossa antropologia popularmente difundida nos domesticou a ver a humanidade como erguida sobre bases animais intensamente ocultadas pela cultura, o pensamento indígena atesta que “os animais perderam atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os não-humanos são ex-humanos, e não os humanos os ex-não-humanos”.

Nesse sentido, a ideia de que um mundo compreende uma multiplicidade de posições subjetivas – perspectivas humanas e não-humanas – poderia retornar à noção de relativismo cultural presente no... multiculturalismo. No entanto, é o inverso que se passa: “todos os serem veem (“representam”) o mundo da mesma maneira – o que muda é o mundo que eles veem”.

Temos então o falso prefixo multi-acoplado ao conceito de natureza. No Multinaturalismo, todo existente pode ser pensado como pensante e a equação cartesiana reinterpretada da seguinte maneira: isto existe, logo isto pensa! O humano é uma unidade representativa variante, pronominal, ocupando provisória e vicariamente a posição de sujeito (cosmológico).

Enquanto nossa cosmologia construtivista pode ser resumida na fórmula saussureana de que o ponto de vista cria o objeto – o sujeito [humano] sendo a condição originária e fixa de onde emana todo ponto de vista – o perspectivismo ameríndio procede segundo a princípio de que o ponto de
vista cria o sujeito. Será sujeito quem se encontrar ativado, reconhecido ou “agenciado” pelo ponto de vista.

O ponto de vista está ancorado no corpo. Diferentes entes veem coisas diferentes porque têm corpos distintos. A morfologia corporal é um signo potente dessas diferenciações, não tanto pela anatomia, mas porque portadora dos afetos que atravessam cada espécie em seu corpo e das afecções que esses encontros podem causar. O Multinaturalismo traz a diferença humano/não-humano para o interior de cada existente.


Tópicos

Se os trópicos são tristes deve ser porque sua aculturação foi e tem sido violenta, porque o dominador foi incapaz de digerir os afetos selvagens em seu encontro com o Outro da outra margem ocidental. Se os trópicos são tristes, deve ser porque certa antropologia vê, com o desaparecimento de um mundo (ameríndio) um caminho sem volta.

Mas os trópicos são tristes por muitos motivos. Dentre eles, quero ainda destacar o fato de não questionarmos verdadeiramente o modo como construímos a ideia de humanidade. O fato de que os colonizadores (brancos e europeus) estavam autorizados a usar a força para desbravar o mundo se baseou na premissa de existência de uma humanidade esclarecida. E o chamado ao seio da civilização sempre foi justificado pela ideia de que existe um modo correto de se estar e habitar na Terra.

Somos mesmo uma humanidade? Um dos meus empreendimentos no campo de argumentação pedagógica tem sido de alargar essa concepção do humano, dando visibilidade aos processos gestionários e domesticadores da atividade educativa, inclusive entre humanos/humanos, tendo em vista que essa concepção cerceia a nossa capacidade inventiva em relação à existência e ao viver-junto.
O que acontece, então, quando o classificado se torna o classificador? Será que a nossa cultura está apta a fazer essa reversão? Quero então finalizar com dois relatos de travessia de volta para a outra margem do ocidente, mas agora, realizadas “ao contrário”, isto é, desde a perspectiva multi-naturalista.

Ailton Krenak (2019) relata que a primeira vez que desembarcou no aeroporto de Lisboa, teve uma sensação estranha. Evitou por mais de cinquenta anos atravessar o oceano, por razões afetivas e históricas. Achava que não tinha muita coisa para conversar com os portugueses e por isso, evitava. Lembra que fora convidado a ir quando se completaram quinhentos anos da travessia de Cabral e recusou por se tratar de uma celebração portuguesa da invasão do seu lugar no mundo. Em 2017, Lisboa foi a capital ibero-americana de cultura. De novo, fora convidado. Como não via sua recusa
anterior como uma rixa, e sabendo que o amigo Eduardo Viveiros de Castro iria proferir uma palestra intitulada Os involuntários da pátria, pensou “Esse assunto me interessa, vou também”.


Andanças

As andanças que fez por diversos lugares e culturas fez justamente com que ele questionasse a nossa insistência no “clube da humanidade” e ratifica a sua posição de que o encontro com o Outro não cessa de existir, estamos convivendo com esse contato desde sempre. Se em 1500 chegaram os primeiros viajantes vindo do ocidente como os primeiros colonizadores, hoje, existem viajantes chegando às cabeceiras dos rios na Amazônia. Para algumas culturas ameríndias, o 1500 ainda não aconteceu.


Dizem que “quem conta um conto, aumenta um ponto” e os povos ameríndios são exímios narradores: é também através de AintonKrenakque sabemos da travessia de Davi Kopenawa:

Ailton Krenak me contou uma história fantástica do dia em que ele e Davi Kopenawa Yanomami foram até Atenas receber um prêmio da Fundação Onassis pela preservação do meio ambiente. Recepcionados com limusine na porta do avião, banquetes, aquela loucura toda, eles receberam o prêmio e, enfim, foram levados para uma visita à Acrópole junto com o embaixador
brasileiro. Quando a visita acabou, o embaixador perguntou para Davi:

“Então Davi, o que você acha?” E ele respondeu: “Ah! Agora eu entendi, a casa do avô do garimpeiro é aqui”. “Onde estão as florestas de vocês?”, ele perguntou. “Aqui nunca teve floresta?” E responderam: “sim, há muito tempo, mas depois...”.

Eu achei fantástico, porque ele trazia, agora, o antes!

Ele diz: “Entendi, vocês são construtores de ruínas!” Numa outra chave, pode-se dizer: “que cretino, não soube ver a beleza da Acrópole”. Mas a relação que ele fazia era entre a ruína da Acrópole e a floresta. Num tipo de pensamento destes [não domesticado], o que interessa é a origem, é o “antes”, então ele vai para trás. Acho isso muito interessante como situação.

Talvez os trópicos sejam tristes porque somos construtores de ruínas.

Referências

DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia
do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

GOMARASCA, Paolo. Multiculturalismo e convivência: uma introdução. Rev. Inter.
Mob. Hum., Brasília, Ano XX, Nº 38, p. 11-26, jan./jun. 2012.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras,
2019.
KRENAK, Ailton. O eterno retorno do encontro. In: NOVAES, Adauto (org.). A outra
margem do ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

MATOS, Olgária. Céu de capricórnio e tristeza do Brasil. In: NOVAES, Adauto (org.).
A outra margem do ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

SANTOS, Laymert Garcia dos. Demasiadamente pós-humano [Entrevista concedida
ao] Grupo CetMe. Novos Estudos/CEBRAP, São Paulo, nº 72, p. 161-175, 2005.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo:
Ubu, 2017.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma
antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

Adalgisa Leão é Pedagoga, Doutora em Educação

imagem noticia unica




Deseja receber O PODER e artigos como esse no seu zap ? CLIQUE AQUI.

Confira mais notícias

a

Contato

facebook instagram

Telefone/Whatsappicone phone

Brasília

(61) 99667-4410

Recife

(81) 99967-9957
Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nosso site.
Ao utilizar nosso site e suas ferramentas, você concorda com a nossa Política de Privacidade.

Jornal O Poder - Política de Privacidade

Esta política estabelece como ocorre o tratamento dos dados pessoais dos visitantes dos sites dos projetos gerenciados pela Jornal O Poder.

As informações coletadas de usuários ao preencher formulários inclusos neste site serão utilizadas apenas para fins de comunicação de nossas ações.

O presente site utiliza a tecnologia de cookies, através dos quais não é possível identificar diretamente o usuário. Entretanto, a partir deles é possível saber informações mais generalizadas, como geolocalização, navegador utilizado e se o acesso é por desktop ou mobile, além de identificar outras informações sobre hábitos de navegação.

O usuário tem direito a obter, em relação aos dados tratados pelo nosso site, a qualquer momento, a confirmação do armazenamento desses dados.

O consentimento do usuário titular dos dados será fornecido através do próprio site e seus formulários preenchidos.

De acordo com os termos estabelecidos nesta política, a Jornal O Poder não divulgará dados pessoais.

Com o objetivo de garantir maior proteção das informações pessoais que estão no banco de dados, a Jornal O Poder implementa medidas contra ameaças físicas e técnicas, a fim de proteger todas as informações pessoais para evitar uso e divulgação não autorizados.

fechar