
Reflexão - O IOF, o decreto e o abuso: quando a extrafiscalidade vira estelionato tributário
08/07/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
1. Introdução — A sutileza da violação
Quando um governante atenta contra a Constituição de forma frontal, o alarme democrático costuma soar alto.
A ruptura visível gera reação imediata: há indignação, oposição e resistência institucional.
Entretanto, quando a violação se mascara de “regulação econômica” ou se traveste de “justiça social”, ela se torna mais perigosa — porque menos perceptível.
Como alertava Aristóteles, “a pior forma de injustiça é aquela que se comete com aparência de legalidade”.
É exatamente isso o que está em curso com o recente aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) por decreto presidencial.
A princípio, trata-se de ato que, embora formalmente permitido pelo texto constitucional, extrapola os limites da legitimidade ao subverter sua finalidade, seu momento e seu método.
Como ensinava Confúcio, “chamar as coisas por nomes errados é o início do caos”. E chamar de “ajuste fiscal” aquilo que é, em essência, um abuso do poder tributário, é não apenas um erro técnico — mas uma violação simbólica da ordem republicana.
Este ensaio demonstra que o recente aumento do IOF não constitui um exercício legítimo do poder regulamentar.
Trata-se, antes, de uma manobra que reveste de formalidade um ato materialmente ilegítimo: uma usurpação disfarçada da competência tributária, associada a uma ética fiscal corrosiva e à erosão progressiva da coerência institucional.

2. A natureza do IOF e os limites constitucionais
O IOF é um dos raros tributos federais cuja alíquota pode ser modificada por decreto presidencial.
Essa prerrogativa decorre do artigo 153, §?1º da Constituição Federal, e justifica-se por sua natureza extrafiscal — ou seja, não tem por objetivo central a arrecadação, mas sim a regulação econômica em sentido amplo.
Sua função é instrumental: serve para modular o comportamento dos agentes econômicos, desincentivar excessos de crédito, corrigir distorções cambiais ou responder com agilidade a choques financeiros. Trata-se de um instrumento de política pública — não de ajuste contábil.
No entanto, como ensinava Montesquieu, “toda autoridade que não encontra limites tende ao abuso”.
A possibilidade de elevar alíquotas por decreto não autoriza o Executivo a criar, por meio de um instrumento excepcional, uma arrecadação paralela à margem do devido processo legislativo.
Quando o IOF é majorado com o objetivo declarado — ou velado — de suprir déficits fiscais permanentes, sua essência se corrompe.
O que deveria ser usado com parcimônia e finalidade regulatória converte-se num atalho arrecadatório, tecnicamente impróprio e constitucionalmente suspeito.
Mais grave ainda: ao subverter a finalidade do tributo, o decreto presidencial deixa de ser mero ato administrativo e se transforma em violação do pacto federativo e da reserva de competência legislativa, pilares fundamentais do Estado de Direito tributário.
Como advertia Kelsen, a validade formal de uma norma não garante sua legitimidade material.
E mais, no caso em tela, a formalidade do decreto esconde um desvio de função, que reclama controle e reação institucional.

3. A má gestão como justificativa para o confisco
O aumento recente do IOF ocorre num cenário de clara expansão do gasto público, sem qualquer esforço estrutural de contenção.
Não houve reforma administrativa, não houve corte de privilégios, tampouco racionalização de subsídios ou revisão de ineficiências crônicas.
Não é a população que vive acima de suas possibilidades — é o Estado. E quando um Estado se recusa a conter a si mesmo, ele inevitavelmente transfere o peso de sua desordem para o setor produtivo e para os contribuintes em geral.
Sob o pretexto de “justiça social”, a medida reveste-se de linguagem moralizante para legitimar o que, em essência, é um mecanismo de confisco disfarçado.
Como ensinava Bastiat, “o Estado é a grande ficção através da qual todos tentam viver às custas de todos” — mas, nesse caso, é o Estado que vive às custas de muitos, para benefício de poucos.
O vício não está apenas no contexto político e econômico em que o decreto foi editado, mas também na ausência de qualquer demonstração técnica de que o aumento do IOF atenderia a uma necessidade de regulação econômica — única finalidade que legitima esse instrumento.
O próprio texto do decreto presidencial não apresenta fundamentos consistentes de natureza extrafiscal.
Tampouco sua defesa judicial, ao acionar o STF para contestar o Decreto Legislativo que o sustou, foi capaz de comprovar de forma minimamente objetiva qual distorção de mercado ou qual anomalia financeira justificaria o ajuste da alíquota.
Não houve diagnóstico inflacionário, descontrole cambial, risco sistêmico ou desestímulo ao crédito que exigisse intervenção urgente.
A motivação real — aumento de receita para cobrir gastos — é incompatível com a lógica do tributo extrafiscal e contraria frontalmente o espírito do art.?153, §?1º da Constituição.
A narrativa oficial sugere que a medida afeta apenas “os ricos”. No entanto, o IOF incide sobre operações comuns à classe média e à população endividada: crédito pessoal, financiamento estudantil, câmbio, seguros e investimentos.
Trata-se, pois, de uma medida regressiva, que penaliza desproporcionalmente quem já sustenta o país com trabalho e impostos.
Como alertava Viktor Frankl, “não somos livres de sofrer, mas somos livres para dar sentido ao sofrimento”.
Aqui, no entanto, a dor é imposta sem sentido, e a liberdade do contribuinte é comprimida sob o peso de um Estado que exige cada vez mais, sem devolver na mesma medida.
Em termos éticos, o que se observa é uma perversão distributiva: o Estado que gasta mal, pune justamente aqueles que trabalham bem.
4. O desvio de finalidade e o abuso do poder regulamentar
A doutrina constitucional brasileira — em harmonia com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal — reconhece que, mesmo quando a Constituição autoriza o Executivo a alterar alíquotas tributárias por decreto, essa prerrogativa não é absoluta, tampouco desvinculada de finalidade.
O artigo 37 da Constituição impõe a todo o Poder Público os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Esses princípios estruturam o regime jurídico-administrativo e vinculam inclusive os atos normativos secundários.
Entre eles, destaca-se o princípio da finalidade, que impõe ao agente público a obrigação de agir não apenas dentro da lei, mas conforme a razão de ser da norma que o autoriza.
Quando esse objetivo é corrompido, configura-se o desvio de finalidade — vício que compromete a validade do ato.
Ora, se o IOF é um tributo de natureza extrafiscal, seu uso deve se restringir a finalidades regulatórias.
Quando é manipulado com o objetivo de elevar a arrecadação para cobrir rombos fiscais estruturais, há clara ruptura com sua função constitucional.
Como ensinava Celso Antônio Bandeira de Mello, “a legalidade não se resume à existência de uma norma habilitadora — exige o respeito à finalidade normativa que justifica o ato”.
A violação desse fim torna o ato não apenas ilegítimo, mas inconstitucional, por vício formal e material.
A aparência de legalidade não pode ocultar a essência do abuso. A legalidade do meio não redime a ilegitimidade do fim — e é precisamente esse o núcleo da controvérsia que se coloca.

5. O duplo padrão: e se fosse Bolsonaro?
Talvez o argumento mais eloqüente e inescapável não seja jurídico nem econômico, mas contrafactual. A pergunta é simples, mas devastadora: e se fosse Jair Bolsonaro quem houvesse aumentado o IOF por decreto, com clara finalidade arrecadatória, para cobrir déficits gerados por sua própria gestão fiscal?
É razoável supor que o Supremo Tribunal Federal teria reagido com celeridade. A Procuradoria-Geral da República poderia ter sido instada a investigar abuso de poder econômico. Uma ação direta de inconstitucionalidade provavelmente teria sido ajuizada por partidos de oposição, e a Corte não hesitaria em conceder liminar para sustar o decreto, sob o argumento de desvio de finalidade e violação da competência legislativa.
Mas quando o atual governo adota a mesma conduta — ou até mais grave, ao se valer de um discurso moralizante sobre “justiça social” — o silêncio institucional impera. Não há liminares, nem ADIs, nem manifestações públicas de ministros. Há prudência seletiva, que se aproxima da cumplicidade.
Essa assimetria não é nova. Em 2016, o então ministro Gilmar Mendes concedeu liminar que impediu a nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva para a Casa Civil do governo Dilma. Alegou-se, com base em evidências concretas, que a nomeação tinha por objetivo afastar o ex-presidente da jurisdição de primeiro grau e garantir foro privilegiado — um caso clássico de desvio de finalidade.
À época, o STF não hesitou em intervir, ainda que a Constituição conferisse à Presidência da República a prerrogativa de nomear livremente seus ministros. Por quê? Porque a Corte entendeu que a finalidade do ato era espúria — e porque Lula ainda não possuía maioria política consolidada entre os ministros da Corte.
A pergunta que se impõe, então, é: será que os critérios constitucionais se aplicam com o mesmo rigor quando o Presidente da República conta com sólida maioria no tribunal que deveria controlá-lo? Ou será que a interpretação do direito oscila conforme a geografia política do poder?
Como advertia Michel de Montaigne, “nada é tão firme e honesto que não se dobre quando o interesse aperta”. E quando o interesse do governante se sobrepõe ao juízo técnico da Corte, o que se compromete não é apenas a imparcialidade das instituições — é a própria confiança pública no sistema de freios e contrapesos.
O duplo padrão, quando reiterado, transforma o arbítrio em jurisprudência tácita. E uma Constituição que vale para uns e não para outros já não é norma suprema — é ferramenta política.
6. Conclusão — Quando o decreto usurpa a lei
O aumento do IOF por decreto presidencial, sob o pretexto de justiça fiscal, revela mais que um expediente técnico: expressa a mentalidade de um Estado que se recusa a cortar na própria carne e escolhe, em vez disso, transferir o peso de sua obesidade estrutural para os ombros da sociedade produtiva.
Pior do que o imposto em si é a lógica que o sustenta: a ideia de que o Estado, por estar moralmente autorizado a redistribuir riqueza, pode tributar sem limites, mesmo entregando cada vez menos. Trata-se de um desequilíbrio ético, fiscal e simbólico, que corrói lentamente os pilares da confiança pública.
É verdade que o artigo 153, §?1º da Constituição permite ao Presidente da República ajustar alíquotas de tributos extrafiscais por decreto. Mas essa prerrogativa não é um salvo-conduto para substituir o Legislativo em decisões estruturais de natureza fiscal. Quando usada para cobrir déficits permanentes, a exceção vira regra — e o instrumento de regulação se transforma em usurpação normativa.
Entretanto, nem tudo está consumado. O ministro Alexandre de Moraes, ao suspender simultaneamente tanto o decreto do Executivo quanto o decreto legislativo do Congresso, adotou o que no meio político amazonense se chama de “parar pra acertar”. Trata-se de uma pausa estratégica, que pode tanto diluir a tensão institucional quanto abrir espaço para uma decisão de maior legitimidade e equilíbrio.
Essa parada, no entanto, não pode ser desperdiçada. Ela é, por sua natureza, uma janela de oportunidade para a ação da sociedade civil — especialmente das entidades que representam diretamente os setores impactados pela medida: CNC, CNI, CNA, FEBRABAN e outras confederações empresariais e setoriais.
Essas entidades, legitimadas técnica e institucionalmente, podem — e devem — buscar sua habilitação como amici curiae no Supremo Tribunal Federal. Mais do que isso: devem se mobilizar nas redes, nos fóruns públicos, na imprensa e junto ao Congresso Nacional, exercendo seu papel cívico com coragem e clareza.
Como dizia o Bhagavad Gita, “agir com retidão é superior à inação diante do erro”. E, neste momento, o erro está em curso, mas a resposta ainda está em aberto.
Se é verdade que o abuso do Executivo transbordou sua competência, é igualmente verdade que o silêncio da sociedade organizada selará o resultado. O problema já não está apenas no decreto — está na omissão dos que têm legitimidade para impedi-lo.
Revogar esse aumento inconstitucional do IOF — seja por via legislativa ou judicial — é um dever de coerência institucional, de respeito à Constituição e de justiça fiscal para com o povo brasileiro.
7. Epílogo — A Finalidade Constitucional, o Juízo de Coerência e a Responsabilidade Histórica
Em 2016, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a julgar um caso cuja importância transcendia o episódio político específico: a tentativa de nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como Ministro da Casa Civil.
À época, o ministro Gilmar Mendes concedeu liminar impedindo a posse, sob a fundamentação de que o ato jurídico — formalmente válido — teria sido praticado com desvio de finalidade, ou seja, com o objetivo de garantir foro privilegiado e blindar o investigado de sua natural jurisdição.
A Corte, então, reconheceu que a legalidade do ato não o isenta de controle quando há evidente ruptura com sua finalidade constitucional legítima.
Esse precedente não apenas firmou a possibilidade de controle judicial de atos discricionários por vício de finalidade (fundamentado no art.?5º, II, e nos princípios do art.?37 da Constituição), mas também reafirmou a ideia de que nenhuma autoridade está acima dos parâmetros constitucionais — mesmo quando revestida da aparência formal da legalidade.
O caso atual, envolvendo o aumento do IOF por decreto presidencial, recoloca o país diante de dilema análogo: um ato normativo com fundamento formal no art.?153, §?1º da Constituição, que autoriza o Executivo a alterar alíquotas do IOF por decreto.
No entanto, tal prerrogativa só é constitucionalmente válida quando respeitada sua finalidade extrafiscal, ou seja, quando visa influenciar o comportamento econômico dos agentes e regular o mercado — não quando serve meramente para ampliar a arrecadação em resposta a déficits causados por má gestão fiscal.
A doutrina tributária é unânime nesse ponto: o uso de tributo extrafiscal com fim arrecadatório desvirtua sua natureza e compromete sua constitucionalidade.
O próprio STF, em precedentes como o RE 704.292 (rel. min. Dias Toffoli), já reconheceu que a finalidade do tributo condiciona sua validade jurídica.
Embora esse precedente não trate do IOF, mas da fixação de anuidades por conselhos profissionais, ele é paradigmático ao reafirmar que a validade de tributos delegados ao Executivo ou a órgãos reguladores depende de limites objetivos e da finalidade prevista em lei.
Ou seja, mesmo quando há autorização constitucional ou legal para editar normas tributárias, o uso do poder regulamentar não pode desvirtuar a finalidade do tributo — exatamente o que se discute no caso do IOF com finalidade meramente arrecadatória.
Neste contexto, o Congresso Nacional, percebendo o desvio de finalidade do decreto presidencial, atuou em sua função de controle político-legislativo e editou um decreto legislativo sustando a medida.
Consubstancia-se prerrogativa prevista no art.?49, V, da Constituição Federal, que confere ao Legislativo o poder de sustar atos normativos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa.
No entanto, o ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, suspendeu simultaneamente o decreto presidencial e o decreto legislativo, convocando uma audiência de conciliação entre os Poderes.
Embora o gesto do Ministro aparente neutralidade e moderação, sua consequência prática é a suspensão do controle legítimo exercido pelo Parlamento sobre uma norma de evidente questionamento constitucional.
Em termos técnicos, configura-se aqui o que a doutrina chama de "paralisia do sistema de freios e contrapesos".
A jurisprudência constitucional comparada — da Alemanha ao Canadá, dos EUA à Colômbia — reforça que o controle interinstitucional é elemento vital do Estado de Direito.
Quando um Poder neutraliza simultaneamente a ação e a reação institucional de dois outros Poderes, o que se forma não é equilíbrio — é o esvaziamento funcional da democracia.
O sistema de freios e contrapesos existe não para evitar o conflito entre os Poderes, mas para regulá-lo com responsabilidade. Suspender ao mesmo tempo o ato do Executivo e a resposta legítima do Legislativo equivale a interromper a dinâmica constitucional que dá movimento à República.
Numa democracia viva, o Judiciário não é o árbitro final de todas as tensões políticas — é apenas um dos jogadores, vinculado às mesmas regras de contenção e proporcionalidade.
A partir do momento que o Supremo se arroga a função de regulador superior, pairando acima do conflito como se fosse o próprio fiador do sistema, rompe-se o princípio republicano da horizontalidade do poder.
E o que deveria ser harmonia entre Poderes se converte, silenciosamente, numa forma sofisticada de supremacia institucional — uma supremacia que não se declara, mas que se impõe pela repetição, pela concentração e pela falta de resistência.
Como advertia Tocqueville, “quando um Poder julga sempre, decide tudo e responde a si mesmo, ele deixa de ser juiz — e passa a ser governo”.
E uma democracia em que o julgamento substitui a política não encontra equilíbrio, mas paralisia travestida de moderação.
Mais do que isso: ao restringir diálogo apenas entre Executivo e Legislativo, sem abrir espaço para a atuação de entidades da sociedade civil diretamente afetadas, como a CNC, CNI, CNA e FEBRABAN — que poderiam contribuir como amici curiae —, o STF impõe ao debate uma lógica interinstitucional verticalizada.
Embora o Congresso represente legitimamente o povo e os Estados, a ausência de participação técnica da sociedade civil organizada limita o pluralismo democrático e compromete a escuta qualificada em um tema que afeta diretamente setores produtivos, consumidores e o sistema financeiro.
O Supremo, ao conduzir um processo de tamanha relevância sem garantir instrumentos formais de participação, desloca simbolicamente a centralidade da cidadania para o centro decisório dos Poderes, esvaziando o próprio sentido republicano do controle de constitucionalidade.
O IOF incide sobre operações comuns à vida financeira cotidiana: empréstimos, cartão de crédito, seguros, câmbio.
Aumentar o IOF significa onerar indistintamente a população, sobretudo os mais pobres e endividados, ao contrário do discurso oficial que promete tributar “apenas os ricos”.
Em suma: trata-se de uma violência fiscal simbólica, disfarçada de justiça social.
Diante disso, o silêncio da Suprema Corte não poderá ser interpretado como prudência. Será lido — pela história e pela doutrina — como relativização de princípios quando conveniente, como substituição da coerência constitucional pela conveniência conjuntural.
A crítica aqui não é moralista, nem partidária — é institucional. O que se espera da Suprema Corte não é alinhamento político, mas fidelidade técnica à Constituição.
Espera-se isonomia nos critérios de controle, coerência nas decisões, e sobretudo o compromisso inegociável com o Estado de Direito.
Tratar o desvio de finalidade como vício grave em 2016 e relativizá-lo em 2025 compromete a confiança pública na jurisprudência constitucional.
A Corte deve ao país, mais do que um julgamento sobre o IOF, uma demonstração clara de que sua autoridade não se curva às circunstâncias, nem oscila conforme o personagem político envolvido.
Porque se a Constituição vale para uns e não para outros, deixa de ser Constituição — e passa a ser instrumento de poder.
Seja qual for o desfecho, ele não dirá apenas o que pensa a Corte sobre o IOF.
Ele revelará, com nitidez, o que o Supremo pensa sobre si mesmo: se continua a se ver como guardião imparcial da Constituição, comprometido com a legalidade universal, ou se se resigna a ser uma instância oscilante, movida pelas conveniências políticas do tempo presente.
Não se trata apenas de julgar um decreto. Trata-se de afirmar ou negar a integridade da ordem constitucional, de reconhecer ou relativizar os limites do poder presidencial, de proteger ou corroer os pilares do pacto republicano.
Se o STF tolerar que um tributo de finalidade regulatória seja usado como instrumento arrecadatório estrutural, estará autorizando, por omissão, que o Executivo transborde suas competências sempre que necessário — e que o Congresso seja desautorizado sempre que inconveniente.
A consequência não será apenas técnica ou fiscal. Será civilizacional. Porque cada silêncio da Corte diante de um desvio de finalidade legitima não só o ato isolado — mas o precedente que ele inaugura. E cada precedente tolerado cria um novo normal, sob o qual o Direito se curva à política, e a Constituição se esvazia no seu próprio texto.
A história — que não esquece — tomará nota não apenas do decreto presidencial, mas da resposta da Suprema Corte.
Pois num país onde milhares de ações dormem em prateleiras judiciais, o tempo do Supremo já não é neutro — ele é escolha, é gesto, é julgamento disfarçado de espera.
Por outro lado, quando age com rapidez seletiva e silencia com lentidão estratégica, a Corte fala — mesmo quando não julga.
E é nesse silêncio que os cidadãos, ricos e pobres, empreendedores e assalariados, podem descobrir-se, paradoxalmente, do mesmo lado: como alvos de um Estado que cobra demais e ouve de menos.
Mas mais do que isso: os cidadãos atentos formarão juízo. Os juristas responsáveis lembrarão. Os filhos da Constituição — que é cada brasileiro honesto — herdarão o resultado.
E há um risco ainda mais sutil, mas profundo: o de que a Corte, ao tentar agradar um governo específico, acabe por unir contra si tanto os que produzem quanto os que consomem, tanto os empreendedores quanto os endividados, tanto os setores organizados quanto os cidadãos comuns.
Porque quando o Direito deixa de proteger todos, ele passa a ser questionado por todos.
E nesse juízo coletivo, não haverá toga que esconda a escolha feita — nem silêncio que a justifique.
(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
NR - Os textos assinados expressam a opinião dos seus autores.

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