
Jorge Pinho* comentou a crônica "O Juiz e o Magnitsky", de Zé da Flauta.
01/08/2025 -
Entre o Aríete e o Bode: A Lógica do Descarte e os Ecos da Inconfidência Brasileira
1. Introdução — O ciclo do poder e o destino de seus instrumentos
Há um tipo de silêncio que não é ausência de fala, mas ausência de escapatória. Um silêncio que antecede o descarte, como o som abafado do tambor que precede a execução de quem já não serve mais à engrenagem.
Em sua crônica intitulada “O juiz e a Magnitsky: crônica de um descarte anunciado”, Zé da Flauta revela esse exato momento: quando o poder, prestes a mudar de mãos ou de tática, começa a se livrar de seus próprios instrumentos.
O texto é mais do que uma crônica — é uma leitura simbólica da história em andamento. O que nele se entreabre é a percepção de que, em certos ciclos do poder, há sempre um personagem que começa como herói do sistema e termina como seu réu. E não por erro, mas por lógica.
Como já defendi em outro ensaio, o personagem em foco foi erguido como aríete — útil para romper os limites constitucionais em nome de uma causa dita superior.
Agora, prestes a se tornar incômodo, se vê aos poucos conduzido ao papel de bode — e não qualquer um, mas o bode expiatório de uma era.
2. Do aríete ao bode: a lógica do uso e descarte
A história política, quando não é escrita com ética, costuma repetir um mesmo padrão: ela instrumentaliza, exalta, desgasta e descarta.
O poder sempre precisará de alguém para carregar a tocha em meio à escuridão, mas, quando a luz começa a revelar as rachaduras da própria estrutura, esse alguém se torna inconveniente.
Aquilo que o sistema tolerava e aplaudia passa a se tornar “excesso”. E o que antes era “coragem” vira “abuso”.
Nesse ponto, a figura do aríete — aquele que serviu para abrir caminho à força, quebrando resistências constitucionais em nome de um suposto bem maior — transforma-se no bode, convocado agora a pagar a conta moral do que o próprio sistema autorizou tacitamente.
Mas há uma diferença: o aríete é admirado, mesmo quando temido; o bode é abandonado, mesmo quando obediente.
3. Ecos da Inconfidência: entre Tiradentes e Joaquim Silvério
A metáfora histórica que mais se impõe nesse cenário é a da Inconfidência Mineira. Naquela conjuração do século XVIII, havia dois arquétipos trágicos em disputa: o mártir e o delator.
Um aceitou o sacrifício em nome de um ideal — e encontrou sua glória no patíbulo. O outro entregou seus pares para salvar-se — e, embora vivo, morreu moralmente para a história.
Hoje, vivemos uma insurreição silenciosa — mas não em busca de liberdade. Diferente dos inconfidentes do passado, que sonhavam com uma República livre, os operadores da atual engenharia política parecem querer nos conduzir a uma autocracia tecnocrática, tutelada por um consórcio de poderes impermeáveis ao voto e blindados por discursos de legalidade sob medida.
O problema, porém, é que todo regime autoritário precisa de um rosto para descarregar sua culpa quando o ciclo de exceção começa a parecer insustentável. E esse rosto raramente é o do verdadeiro mandante.
4. O verdadeiro vilão se esconde atrás do teatro
Não é necessário nomear personagens. O teatro político já deixou claro que seu roteiro se repete: cria-se uma figura pública com aura messiânica, que se dispõe a agir com “mão firme” contra os que ameaçam a “ordem”.
Essa figura, aplaudida pela elite moralista e pela imprensa do momento, passa a ter liberdade para suprimir vozes, reinterpretar leis, censurar ideias.
Mas o tempo — esse juiz silencioso — começa a corroer o verniz. E o que era tolerado passa a ser “polêmico”; o que era aclamado vira “exagerado”; o que era conveniente torna-se perigoso.
Quando chega a hora da substituição, o sistema age com requinte: promove o linchamento moral do próprio operador que antes aplaudia, apresentando-o agora como culpado de todos os excessos.
A liturgia se repete: o teatro precisa de um vilão para a catarse final. O verdadeiro poder, esse, se mantém nos bastidores — preservado, protegido e pronto para erguer o próximo boneco.
5. A pergunta que fica: Tiradentes ou Silvério?
A encruzilhada do personagem não é jurídica, é moral. E, talvez, metafísica. A pergunta que paira é se, diante da possibilidade do abandono, ele assumirá a própria trajetória e se tornará símbolo — ou se entregará ao pânico e ao ressentimento, tornando-se delator, negando suas motivações e acusando seus próprios aliados.
Será mártir de si mesmo ou cúmplice de algo ainda maior?
Na encruzilhada da história, não é o cargo que define a grandeza do homem — é a forma como ele enfrenta o abandono.
Alguns escolhem a dignidade do silêncio; outros, a tagarelice da autopreservação. Alguns gravam seus nomes na memória moral do povo; outros desaparecem nos rodapés dos autos.
6. Conclusão — O descarte como juízo final
Zé da Flauta nos oferece uma crônica que é quase um oráculo. Sem gritos, sem panfletos, sem escândalo.
Apenas o som do sino que toca, avisando que a missa do poder está prestes a mudar de sacerdote — e, com ela, o destino dos que antes o serviram com fervor.
O ciclo se fecha. O aríete foi útil, mas o portão já está aberto. Agora, o bode será levado ao altar. O povo — esse que observa de longe — ainda não sabe se o sacrifício purificará o templo ou apenas alimentará os novos deuses.
Mas uma certeza resiste: a História tem olhos. E mesmo quando tarda, ela vê.
Nota do autor
O texto de Zé da Flauta acende luz sobre uma engrenagem que muitos fingem não enxergar.
É preciso coragem para apontar que o poder, quando perde o medo, começa a trair seus próprios aliados.
Que esse alerta não seja em vão. Que o leitor saiba distinguir os mártires dos oportunistas. E que, quando a justiça parecer teatro, a lucidez ainda seja possível.
*Jorge Pinho é advogado, escritor e pensador. Ex-procurador-geral do Estado do Amazonas.
NR - As crônicas refletem a visão, a opinião e a imaginação dos seus autores.
