
A Ponte de Ferro – Como o Recife aprendeu a atravessar o tempo, por Zé da Flauta* 20/08/2025
20/08/2025 -
O Recife é uma cidade feita de pontes porque Deus, quando a construiu, quis que a gente aprendesse a atravessar mais do que rios, atravessar fases, amores, e até governos ruins. No meio desse aprendizado está a Ponte da Boa Vista, essa velha conhecida de ferro que, com quase dois séculos de vida, já viu mais cochichos e segredos sussurrados sobre suas tábuas do que confessionário de igreja.

Encomenda
No tempo do Conde da Boa Vista, o Recife queria deixar de ser vila grande para posar de cidade europeia. O conde, homem de bigode impecável e ambição maior que maré viva, decidiu que madeira não dava mais conta. Madeira apodrece, ferro é eterno, pensava ele, com aquele otimismo típico de quem ainda não conhecia a umidade recifense.
O projeto
O projeto foi encomendado à Fundição Saut-du-Tarn, na França, uma ponte novinha em ferro fundido, desmontada em caixotes, como se fosse um brinquedo de adulto. Chegou de navio, cada peça com cheiro de carvão e sotaque francês, para ser montada ali, diante de uma multidão que via naquilo o futuro chegando.

Inauguração
A inauguração foi festa de gala, chapéus de plumas, ternos engomados, o bispo abençoando o ferro como se fosse altar, e a elite atravessando a ponte só para poder dizer “eu fui um dos primeiros”. No dia seguinte, claro, a ponte já estava democratizada, menino correndo, vendedor de tapioca, boi atravessando, e o inevitável casal de namorados parando no meio para ver o reflexo das luzes no rio. Porque, no Recife, tudo que é construído para o progresso acaba virando cenário para a vida cotidiana.
Coragem
Hoje, a velha Ponte da Boa Vista continua lá, com seu ferro gasto e suas histórias guardadas nas porcas e parafusos. Passou por reformas, sobreviveu a enchentes, bondes, ônibus e à pressa moderna. É como se, a cada passo que damos sobre ela, a gente também atravessasse o tempo. Porque ponte, no fundo, não é para ligar ruas, é para lembrar que todo rio se atravessa e que toda cidade, assim como a vida, só se sustenta se tiver coragem de sair de uma margem e ir para a outra.
Até a próxima!
*Zé da Flauta é músico, compositor, filósofo e escritor.
