
Ensaio - Do cogumelo ao termômetro: o medo como tecnologia de poder 27/08/2025
27/08/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
1. Introdução — O medo como governo invisível
A história política da humanidade é também a história da administração do medo. Desde os tempos mais remotos, o poder entendeu que a força bruta, embora eficaz no curto prazo, é instável. Nenhum regime sobrevive apenas com soldados, muros ou armas. É preciso algo mais profundo: manter a mente coletiva sob a expectativa da ameaça. O medo é, por excelência, a mais refinada tecnologia de governo.
Na Idade Média, o medo do inferno e da danação eterna disciplinava condutas. No século XX, o medo do comunismo e do fascismo justificava vigilâncias e perseguições. Durante a Guerra Fria, o medo nuclear foi elevado à categoria de pedagogia global: filmes, relatórios científicos e exercícios militares lembravam à população de que bastava um erro estratégico para que a vida fosse extinta em minutos. Hoje, no século XXI, esse mecanismo permanece ativo, mas transfigurado. O cogumelo atômico foi substituído pelo termômetro climático. A catástrofe continua sendo anunciada; apenas mudou de rosto.
2. O terror nuclear: pedagogia da Guerra Fria
Entre 1945 e 1991, a lógica da dissuasão nuclear governou o mundo. O medo atômico era, ao mesmo tempo, racional e irracional: racional porque ogivas existiam e eram contáveis; irracional porque modelos projetavam cenários de “inverno nuclear” em que a vida na Terra seria aniquilada. A ciência, aqui, não era mera observação neutra, mas parte integrante da máquina do medo.
Hollywood amplificava o terror em filmes apocalípticos; a imprensa reforçava a narrativa com manchetes alarmantes. O cidadão comum aprendia a viver sob a sombra da catástrofe, e governos usavam essa pedagogia para legitimar gastos militares, intervenções políticas e espionagem interna. O medo nuclear era, ao mesmo tempo, um perigo real e uma estratégia de poder.
3. O esgotamento do terror atômico
Com a implosão da União Soviética, essa narrativa perdeu eficácia. As ogivas permaneceram, mas o pavor coletivo diminuiu. Sem um inimigo geopolítico claramente definido, a pedagogia do medo perdeu seu objeto. A “paz” pós-Guerra Fria, contudo, não trouxe liberdade. Ao contrário: exigiu a invenção de um novo medo, mais eficaz que o anterior.
O terror nuclear tinha limites: dependia de Estados específicos (Moscou e Washington), de arsenais mensuráveis, de uma guerra improvável. Para manter a sociedade sob vigilância contínua, era preciso algo mais difuso, intangível, que pudesse ser atribuído a todos e a ninguém. Surge, então, o medo climático.
4. O clima como espantalho perfeito
O medo climático é superior ao medo nuclear por três razões:
i. É intangível: não há ogivas a serem contadas, nem inimigos a serem identificados. O “vilão” é difuso, invisível, atmosférico.
ii. É universal: todos são culpados, de países industrializados a cidadãos comuns que ligam o ar-condicionado.
iii. É inesgotável: a catástrofe é sempre futura, mas nunca resolvida. Adia-se o prazo, reformula-se a meta, mas o apocalipse permanece.
Se antes os cientistas construíam modelos para prever a ecatombe nuclear, agora constroem modelos climáticos para prever catástrofes ambientais. A matemática, ontem e hoje, cumpre a mesma função: não apenas descrever o real, mas produzir um imaginário coletivo de vulnerabilidade.
5. ESG: herança soviética reciclada
Poucos lembram que a retórica do Environmental, Social and Governance (ESG) tem raízes em slogans da propaganda soviética. Na URSS, falava-se em “responsabilidade social e ambiental” como contraponto ao capitalismo “predador”. Com a queda do Muro, o Ocidente não apenas venceu o adversário, mas incorporou parte de seu léxico.
Hoje, corporações e fundos trilionários adotam o ESG como selo moral. O que nasceu como retórica ideológica converteu-se em instrumento econômico: só recebe crédito ou investimento quem repete o catecismo verde. O Ocidente, ironicamente, adaptou para o mercado a lógica de propaganda que antes condenava.
6. As COPs: liturgias globais do medo
Desde 1995, as Conferências do Clima (COPs) se tornaram rituais anuais de reafirmação da narrativa. A cada edição, repete-se a liturgia: “última chance”, “meta inadiável”, “salvar nossos filhos”. Como nos discursos escatológicos, o apocalipse é sempre iminente, mas nunca realizado.
A COP 30, em Belém, em 2025, terá carga simbólica máxima. A Amazônia será apresentada não como território de um povo soberano, mas como “pulmão do mundo”, patrimônio a ser administrado pela burocracia internacional. Nada mais eficaz para manter a disciplina global do que associar a floresta à culpa universal.
7. O jornalismo catequético
O jornalismo ambiental deixou de ser crítico para tornar-se catequético. Grandes jornais criaram seções inteiras financiadas por fundações e corporações interessadas na pauta. Repórteres são enviados às COPs com despesas pagas, e o resultado é previsível: não há reportagem, mas liturgia.
Quem questiona é imediatamente rotulado de “negacionista”, termo carregado de peso moral. O argumento é substituído pela desqualificação. Como dizia Montaigne: “O homem mais enganado é o que se engana com a certeza de sua razão”. Aqui, a certeza não vem da razão, mas do medo reiterado pela mídia.
8. Filosofia da manipulação
O fenômeno pode ser lido à luz dos clássicos:
Platão: as COPs são a nova caverna. Gráficos coloridos e linhas vermelhas são sombras projetadas na parede; poucos perguntam quem segura as tochas.
La Boétie: o povo aceita a servidão voluntária, entregando liberdade em troca da promessa de salvação climática.
Hegel: o medo, que poderia ser motor de consciência, é instrumentalizado como fim em si mesmo — paralisar, não despertar.
Edgar Morin: a complexidade climática é reduzida a slogans simplificadores: “1,5 ºC”, “carbono zero”, “última chance”.
Buber: o diálogo com a realidade é substituído por monólogo ideológico. O “Eu-Tu” desaparece; resta apenas o “Eu-Isso” da manipulação.
9. O negócio do medo
O verdadeiro negócio não é salvar o planeta, mas vender segurança simbólica.
Governos lucram com novos impostos e taxas de carbono.
Corporações faturam com créditos verdes e monopólios energéticos.
ONGs vivem de financiamentos milionários.
A China controla a cadeia de lítio e ganha hegemonia industrial.
Jornalistas e especialistas são financiados para repetir a narrativa.
O medo tornou-se mercadoria. E quanto mais difuso, mais lucrativo.
10. Conclusão — A sombra que permanece
Se o terror nuclear tinha limite — ogivas contáveis, inimigos visíveis —, o terror climático é perfeito: não pode ser provado nem refutado no curto prazo. É uma profecia infinita, sempre adiada, sempre urgente.
COP 30
A COP 30 será o ápice simbólico desse processo: um grande teatro internacional, em que a Amazônia servirá de palco e pretexto para reforçar o controle global.
O que mudou não foi a ciência, mas o objeto do pavor. O cogumelo deu lugar ao termômetro; a sombra permanece. O medo é, ainda hoje, a mercadoria mais rentável e a mais eficaz das tecnologias de poder.
Epílogo — COP 30: o teatro do medo e a centelha da verdade
As COPs não são fóruns de ciência, mas assembleias de encenação. A cada edição, repete-se o mesmo rito: promessas inalcançáveis, cifras bilionárias sem lastro, discursos que falam em “salvar o planeta”, mas que, na prática, apenas negociam o tempo de sua lenta agonia. Proclamam a redenção, mas perpetuam a dependência; anunciam a urgência, mas cultivam a inércia.
O erro está no diagnóstico. O carbono não é o inimigo essencial: nós somos feitos de carbono, e as florestas respiram dele. O verdadeiro veneno é a poluição concreta — metais pesados, gases tóxicos, resíduos plásticos que se acumulam em rios e mares, contaminando a vida de forma palpável. O clima, afinal, é regido por forças que escapam ao controle humano: o Sol, com seus ciclos e convulsões, dita ritmos que nenhuma conferência pode alterar. A redução da complexidade a uma molécula de carbono é falácia conveniente, que desvia o olhar dos problemas tangíveis e alimenta a indústria da culpa.
Verde
Enquanto isso, vende-se como “verde” uma frota de automóveis elétricos cujas baterias carregam, em silêncio, o destino incerto dos resíduos e o trabalho infantil de minas africanas. É o triunfo da propaganda sobre a verdade, do marketing sobre a ciência, da aparência sobre a substância. Nada contra o lucro — mas quando o lucro se dissocia da responsabilidade, converte-se em sinal de decadência espiritual, e a ética se prostitui por vinténs.
Advertiu
Platão advertiu que, enquanto olharmos apenas para as sombras, tomaremos simulacros por realidade. As COPs são a versão contemporânea da caverna: gráficos e projeções que mais confundem do que esclarecem. O que se apresenta como pacto civilizatório é, na essência, um biombo para sustentar hegemonias antigas, agora travestidas de zelo planetário. O Sul Global permanece aprisionado, vivendo da promessa de cheques sem fundos emitidos por quem se alimenta de sua vulnerabilidade.
Ampliará esse teatro
E a COP 30, em Belém, apenas ampliará esse teatro. Sob a égide de um governo corroído pela cleptocracia reincidente, incapaz de unir palavra e exemplo, veremos a Amazônia convertida em cenário para discursos ocos e hotéis a preços de ouro. O resultado será previsível: mais retórica, menos soluções; mais câmeras, menos compromissos; mais espetáculo, menos substância.
Mas nem tudo se perde. Se a política oficial se dissolve em encenação, resta a força silenciosa da ação concreta: indivíduos que preservam, comunidades que resistem, projetos que florescem longe dos palcos iluminados. Talvez aí resida a centelha do futuro: não no teatro das elites globais, mas no labor anônimo de quem, sem alarde, cuida do real.
O terror nuclear
O terror nuclear dependia de arsenais contáveis. O terror climático depende de modelos intangíveis. Ambos cumprem a mesma função:
disciplinar pelo medo. Mas a verdade não se cala: enquanto houver quem ouse sair da caverna, o teatro perde sua magia. E o medo, por mais rentável que seja, não resiste diante da luz da verdade.
(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
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