
Luís de Camões
Mistérios e segredos revelados sobre o gênio e sua obra
26/03/2024 - Jornal O Poder
José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e escritor, é um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Ex-Ministro da Justiça. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife. Eleito para três Academias: a Pernambucana, a Brasileira de Letras, cadeira 39, e a de Lisboa. José Paulo, Zé Paulinho para os milhares de íntimos e milhões de admiradores, fez pesquisas para revelar lados pouco conhecidos de Camões. O poeta está completando 500 anos. Ontem, O Poder publicou entrevista com José Paulo. Complementada, hoje, com nova conversa sobre a sua pesquisa.
O Poder - Camões era honesto ou um pilantra?
José Paulo - Quem sou eu para julgar. Só sei que na China foi provedor dos defuntos, desempenhando suas funções com não muita lisura. E, vez por outra, frequentaria prisões. Por dívidas. Ou rixas. Como dizia o próprio Camões, “Erros meus, má fortuna, amor ardente/ Em minha perdição se conjuraram”.
O Poder - Sempre escrevendo, supomos.
José Paulo - Certamente. Sobretudo, Camões nunca parou de escrever.
O Poder - O exílio teve um final?
José Paulo - Em 1570, afinal, estava novamente de volta a Lisboa. Com as carências financeiras de sempre. Segundo se conta, sobreviveu durante algum tempo graças ao fiel Jau, trazido das Molucas. Esse escravo esmolava de noite pedindo pão para seu mestre. Importante é que ‘Os Lusíadas’ avançava. Sob o patrocínio de D. Manuel de Portugal, devotou-se então à sagração de seu país – naquela que é considerada, consensualmente, a mais bela epopeia do século XVI.

O Poder - Camões viu sua epopeia editada?
José Paulo - Sim. A edição princeps – assim se diz das primeiras edições de um livro – foi impressa na tipografia de António Gonçalves, em Lisboa, no ano de 1572. Camões tinha então 48 anos. Com privilégio real de impressão por 10 anos e publicada com um benévolo (e corajoso) parecer censório de frei Bartolomeu Ferreira, sem data. Terá tido também licença da Mesa Inquisitorial – que, todavia, não foi impressa. O aparato paratextual é simples, 8.816 versos e 1.102 estrofes divididas em 10 cantos. Utilizando a divisão da ‘Divina Comédia’, de Dante – que assim tem, como cantos, seus 100 livros. Há, hoje, cerca de 25 exemplares ainda existentes em bibliotecas ou nas mãos de colecionadores. Talvez menos que 10 completos.
O Poder- um momento. Esta questão da edição princeps não é pacífica...
José Paulo - Realmente. Até fins do século XIX, se acreditava ter havido duas edições princeps. Um mito devido a Manuel Faria e Souza – que (em 1639), ao comentar ‘Os Lusíadas’, confrontou dois volumes daquele mesmo ano de 1572; e verificou haver, neles, pequenas diferenças. Depois se comprovando terem sido bem mais que duas. Restando hoje assente que assim ocorreu pelo desejo de Camões, ou seu editor, em corrigir pequenas incorreções das impressões anteriores. Dando-se que, em alguns casos, foram sendo aproveitados conjuntos de páginas já impressas, antes, e não utilizadas. Fazendo-se, as correções, nas novas páginas impressas. Uma explicação que só se pode compreender pelos rudimentares sistemas de impressão daquela época.
O Poder - Interessante. Cite algumas dessas diferenças...
José Paulo - Apesar de numerosos indicativos dessa edição princeps na comparação com as demais, e curiosamente, o que a identifica é um pelicano, à primeira página, com o bico virado para a esquerda do leitor. Além do pelicano, também um detalhe no terceiro verso da primeira estrofe, que começa por “E entre”; enquanto, nas versões corrigidas, começa por “Entre”. Essas edições de 1572 tornaram-se conhecidas, por isso, como “Ee” e “E”.
O Poder - É um detalhe que deve interessar apenas aos bibliófilos. Mas qual a pioneira reconhecida pelo autor?
José Paulo - Camões tinha com ele, ao morrer, aquela que acabou tida como a primeira edição autêntica, deixada ao frei Joseph Índio, que o acompanhava num hospital de Lisboa. Esse volume é conhecido como Holland House – por ter estado em casa do general Lord Holland, em Londres, a partir de 1812 e por mais de cem anos.

O Poder - Quanto tempo depois foi impressa outra edição?
José Paulo - Outra edição famosa, em Portugal, é a segunda? conhecida como dos piscos. Surgida em 1584, dois anos após o fim do prazo do alvará que protegia a primeira (de 1572). Impressa pela tipografia Manuel de Lira, em Lisboa, e com licença do mesmo frei Bartolomeu Ferreira – responsável pela autorização da edição princeps. O nome jocoso dado à edição vem de uma citação, nos Lusíadas (Canto III, 65), sobre a “piscosa Cizimbra”. Sezimbra é uma vila portuguesa no distrito de Setúbal. Abundante em peixes, bom lembrar. Trata-se da primeira edição comentada de ‘Os Lusíadas’. Explicando a citação, o comentador, como referência aos pássaros que ali se juntam em passagem para a África, provavelmente se referindo ao Pisco-de-peito-ruivo (Erithacus Rubecula).

O Poder - Podemos dizer que Camões sofreu influências?
José Paulo - Claro. Camões segue a trilha de outras epopeias do passado. Sobretudo a Eneida, de Virgílio; o que se vê até na comparação dos versos iniciais dos poemas: Canto as armas e o varão, Virgílio; e As armas e os Barões assinalados, Camões. Também a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Bem como a Divina Comédia, de Dante. Além de numerosas epopeias surgidas em Portugal, no mesmo século XVI de Os Lusíadas, mas antes dele – como as de André de Resende, Manuel da Costa ou José de Anchieta; e manuscritos que circularam, antes de 1572, como os de António Ferreira e Jerónimo Corte-Real.
O Poder - Como o senhor resumiria Os Lusíadas?
José Paulo - Nele temos o passado, com a exaltação das conquistas em que o povo português foi muito além do Mar Tenebroso. O presente, com o lamento pelo abandono das terras africanas por Portugal – de Safim a Azanos, de Azila a Alcácer Cequer; sem contar a ameaça turca, conjurada só na batalha naval de Lepanto, em 7 de outubro de 1571. Mas é sobretudo a antevisão de um futuro grandioso, na linha da Utopia do Quinto Império.
"Para servir-vos, braço às armas feito; Para cantar-vos, mente às Musas dada” (Os Lusíadas, Canto X, 155). Pouco antes, em Desenganos, escreveu “Nascemos para morrer/ Morremos para ter vida/ Em ti morrendo”. Assim foi.
O Poder - Qual a relação da morte de Camões com a tragédia nacional de Alcácer Quibir?
José Paulo - Luís Vaz de Camões morreria em 10 de junho de 1580, pouco depois do desastre de Alcácer Quibir – em que desapareceu o rei D. Sebastião, o Desejado, e Portugal passou a ter um rei espanhol. Foi enterrado na igreja de Santa Ana e seus restos acabaram transferidos, em 1894, ao Mosteiro dos Jerônimos, onde repousam num túmulo esculpido em mármore bem na entrada. Consta que disse, ao morrer, “Ao menos morro com a pátria”.
O Poder - Puxa, emocionante. Obrigado pelo seu tempo.
José Paulo- É bem convencional, mas é verdadeiro. O prazer foi todo meu.